30 de julho de 2015

Dsafio Espinho D'água de Contos - As Aparências Enganam - A VIDA ENSINA - autor Will




Três e meia da tarde. Um sol de rachar. De um lado a entrada o shopping center, que à sua frente tinha o estacionamento, do outro lado um semáforo na avenida margeada por um córrego fétido que alimenta de detritos o rio Tietê mais adiante, onde eu aguardava o sinal abrir para os pedestres e eu poder atravessar. Numa das travessas, enquanto os carros paravam diante do sinal vermelho, dois moleques, que não deveriam ter mais de dez ou doze anos, sujos, mal vestidos e mal encarados, chegavam junto dos vidros dos carros e pediam alguns trocados. Alguns motoristas davam algumas moedas, outros negavam e alguns até fechavam o vidro para não serem incomodados pelos meninos mestiços. Na segunda vez que o sinal fechou, apenas um dos garotos pediu dinheiro, o outro ficou encostado num poste de luz olhando as águas escuras e putrefatas do córrego.
O sinal finalmente abriu para mim e eu segui em direção ao shopping center enquanto pensava nos moleques. Por que pediam dinheiro? Para comprar cola de sapateiro e ficar a noite toda chapados para enganar a fome e o frio da madrugada? Comprar comida? Dar o dinheiro para algum adulto filho da puta que os explorava sem que ninguém do poder público tomasse alguma providência? Comprariam alguma arma; sei lá, fiquei pensando, sem saber o que pensar direito.
Entrei no estacionamento do shopping center, subi até o térreo, o sol rachando minha cabeça, fervendo minhas ideias. O estacionamento estava vazio, numa quinta-feira à tarde era normal. No meio do estacionamento havia uma grande armação de fios e plástico; era uma enorme cama elástica onde se poderia ficar pulando por três minutos pagando-se seis reais. O som bem alto tocando música junto da entrada do cercado da cama elástica, tentando chamar os fregueses invisíveis. Segui até a entrada do shopping, nada me interessava ali, apenas a livraria, o cinema e o que eu queria no momento: o ar condicionado. O shopping era apenas uma passagem, meu destino era outro. Continuei ainda pensado naqueles dois moleques que pediam dinheiro no sinal.
Passados vinte minutos, saí do shopping para ir até meu destino, quando passei novamente pelo estacionamento fui surpreendido com o que vi. Na cama elástica, pulando e dando cambalhotas estavam os dois moleques que estavam pedindo dinheiro do sinal onde parei minutos antes. Davam uma, duas, às vezes, três piruetas seguidas, pareciam ginastas profissionais, com um sorriso largo, feliz e despreocupado no rosto. “Então era pra isso o dinheiro” disse para mim mesmo. Foi quando parei um pouco para pensar, mesmo embaixo do sol de rachar era preciso parar e pensar. Senti vergonha de ficar pensando certas coisas, caindo nas mesmas armadilhas preconceituosas que nos condicionam a pensar sempre as mesmas coisas das mesmas pessoas, situações ou sentimentos. Por que eu, quando vi aqueles dois moleques na esquina pedindo dinheiro, não os vi apenas como duas crianças? Por que vi dois seres tão estranhos do que realmente eram?
Passei pela cama elástica, os dois meninos continuavam pulando, aproveitando os três minutos de diversão aos quais tinham direito, e saí sentindo um amargo na alma, daqueles que a gente sente quando se vê diante da nossa própria mesquinhez, mas sabe que ao menos aprendeu mais uma lição que vida insistentemente ensina aos que não fecham os olhos e ouvidos para sua voz sutil, mas visceral e indelével.

28 de julho de 2015

Desafio Espinho Dagua de Contos "As Aparências Enganam" - HOTEL CALIFORNIA - autor Kiko Zampieri





Jennifer estava cansada, a vista turva e uma leve tontura, parecia estar entorpecida pela longa viagem. Quando avistou aquele hotel, suspirou e acelerou seus passos para chegar até a recepção.
Era uma jovem corajosa, passara sua vida lutando para sobreviver, maus tratos na família, namoros violentos, bebida e até droga pesada. Conseguira sobreviver e agora queria encontrar uma paz tão procurada, num lugar com muito sol, praia e tranquilidade e quem sabe um homem decente que a amasse.
Nada havia sido planejado para aquela viagem, nem estar diante daquele hotel. O salão estava sombrio e vazio e um balcão no fundo indicava ser a recepção. Um homem vestindo um terno preto, camisa branca e uma gravata borboleta vermelha a aguardava atrás daquele balcão.
Colocou a pequena mala no chão quadriculado com pisos brancos e pretos e pediu um quarto. Sem dizer nenhuma palavra, virou o livro de registros e assinalou para que ela preenchesse. No alto da folha, em letras douradas, o nome do hotel. Hotel Califórnia. Sorriu ao lembrar da música do seu passado. Depois recebeu a chave do número 13 e seguiu pela escadaria, ficava no primeiro andar. A luz era pálida e ela teve que subir com cuidado, depois o corredor com a mesma luz até a porta, abriu, buscou o interruptor, a mesma luz, jogou a pequena mala sobre a cama e foi até a janela, abriu as cortinas e pôde ver a rua escura e deserta. Fechou as cortinas e foi se sentar na cama, destravou os dois ferrolhos da mala e abriu. Uma camisola bege de algodão, era a única peça. Tirou sua roupa e vestiu a camisola, queria dormir e poder ver o sol entrando pela sua janela, pela manhã.
Um grito vindo do corredor a despertou. Outro grito agora mais perto. Seu corpo tremeu. Uma luz vermelha invadiu sua janela e os vidros se estilhaçaram pelo chão e sobre a cama. Ela correu até a porta. Não abria. Sacudiu com mais força. Nada. Uma sombra passou por ela e pela porta, virou-se e não havia nada, nem a luz vermelha e nenhum vulto. Outro grito, agora vindo do andar de baixo. Sacudiu a porta novamente, abriu. Deparou no corredor várias pessoas correndo desesperadamente para a escadaria. Um incêndio. Um terremoto. Seguiu as pessoas pela escadarias. Um passo em falso a fez rolar pelos degraus até o chão quadriculado. Não havia ninguém. Outro grito e dessa vez no andar de cima. Seu corpo estava trêmulo, pelo medo ou pelo chão frio, não sabia, queria se levantar e sair daquele lugar. O balcão estava vazio, as luzes começaram a piscar. A porta de entrada trancada. Entrou em desespero. Outro grito, agora mais próximo dela, virou-se e um homem enorme descia pela escada. Uma das mãos carregava um enorme facão e na outra uma cabeça segura pelos longos cabelos. Outro grito, agora era o seu. Encontrou forças e saiu da porta no exato momento em que ela foi arrebentada e um vulto surgiu da escuridão.
Era um homem alto, capa de chuva negra, um chapéu de abas largas que cobriam parte do seu rosto, botas e na mão uma Winchester 33, com o cano niquelado e brilhante. Ele ficou ali parado debaixo da soleira. Ela estava paralisada, mas foi se acalmando quando os olhos dele fixaram nela e sentiu um certo conforto correr por suas veias. O homem voltou-se então para o outro que estava parado no final da escadaria e descarregou cinco tiros. Dois no peito que o fizeram dar um passo para trás, um em cada joelho que o fizeram desabar sobre o piso quadriculado e o último de misericórdia na cabeça, fazendo-a se espalhar pelo chão.
Ela estava toda encolhida sobre uma das cadeiras estofadas, sentiu uma mão macia e quente segurar em braço e a levantar. Então foi erguida pelos braços fortes, ajeitada no peito do seu salvador, estava se sentindo segura agora. Foi caminhando pelo salão, subiu as escadas e com o pé abriu a porta do quarto dela. Delicadamente colocou-a sobre a cama e a cobriu. Ela sorriu e apertou a mão dele, como se não quisesse deixá-lo ir. O cansaço era maior e seus olhos foram se fechando descontrolados, antes que adormecesse pode ouvir o estranho gritando ordens a um grupo de anjos na porta.
- Diminuam a dosagem da Amitroptilina e pelo amor de Deus, mantenham as correias presas! Vocês pensam que isso é um hotel?

24 de julho de 2015

DESAFIO ESPINHODAGUA DE CONTOS - As Aparências Enganam - "GOLD DIGGER" de Leona Volpe



Encontre-me” — ele sussurrou em seu ouvido — “você precisa me encontrar”. Clara abriu os olhos em sua cama e apertou o lençol contra o rosto, sem saber o que fazer. Ele, o seu fantasma pessoal estava sentado na poltrona em frente à cama e não se parecia com qualquer assombração comum.
Tinha começado uns meses antes, com um presente de uma amiga. Um colar inofensivo de sementes amazonenses. Desde que ele havia entrado para sua casa, aquela criatura vinha perturbando seu sono.
“Venha” — ele lamuriou de novo e ela puxou as cobertas. O ser era um homem alto, de pele clara e um imensamente sedoso e liso cabelo branco que contrastava com suas sobrancelhas escuras e olhos violetas. Era também um choque contra o cocar de penas negras. Ele não se parecia com um nativo, de qualquer forma. Estava mais para as lendas das icamiabas, as amazonas loiras que os portugueses enfrentaram. “Venha...” ele pediu e ela se apertou um pouco mais. Antes que percebesse, havia dormido.
No outro dia comprou as passagens, contou a história para um guia e mandou fotos do colar. Quando ele aceitou a aventura ela se enfiou no avião, esperando que de alguma maneira pudesse jogar aquele colar no rio e que talvez um boto o engolisse. Esperava que caísse diretamente em uma tribo de índios, inclusive, mas isso não aconteceu.
Ao invés, quando chegou a Manaus foi recebida por uns tipos bem civilizados, em prédios bem civilizados também e como uma boa paulista, ela civilizadamente arranjou seu tour pelo lado selvagem da vida e recontou um pouco da história ao seu guia, já que havia adiantado seu caso via email.
Ele franziu as sobrancelhas, olhou o colar e disse algumas palavras na língua nativa para um menino indígena. Só viu suas sobrancelhas se erguendo como se ele estivesse realmente admirado.
— O que? — Ela perguntou — ele é tipo aquela vampira de Um Drink no Inferno? — O guia riu dela, mas ainda não parecia confortável.
— Não é nada.
Ao anoitecer eles seguiram para o barco que a levaria pelo rio Amazônas, para conhecer as aldeias ribeirinhas e admirar as belezas naturais. Na escuridão da noite, ela podia ver as estrelas no céu e na água e era algo agradável de se ver no silencio da floresta, com apenas uns sons silvestres emergindo da tranquilidade.
Muito ao longe ela ouviu o suave bater de tambores e escorada no convés do barco, Clara não podia precisar de onde vinha o som. Por um momento achou que era seu próprio guia brincando com sua imaginação e no outro, imaginou que poderia vir de fato da floresta. Seu guia em questão pareceu sentir que estava sendo acusado injustamente e se aproximou dela. O guia sentou-se ao seu lado e perguntou:
— O que você acha desse fantasma? Que essa criatura está te perseguindo?
— Pode ser — ela respondeu — talvez queira me matar, talvez me seduzir como uma sereia, me trazendo para esse local — o guia não respondeu e ela se virou para ele — não são assim suas histórias de boto? No dia um peixe, de noite um homem bonito?
— É — ele respondeu lentamente, observando o chão amadeirado — as coisas no Amazonas nem sempre são o que parecem.
Clara apertou os olhos.
— O que quer dizer? O que pensa que ele é?
Ela não teve uma resposta adequada. Na verdade, sua resposta foi bastante rude, com uma navalha sendo empurrada em direção à sua garganta.
 — Se sua amiga conseguiu um colar de Akakor e esse maldito pajé esta te chamando, isso quer dizer que pode nos levar até o ouro!
— Que ouro? — Ela engasgou de ódio e pensou em chutá-lo. Repensou a ideia quando se lembrou da navalha e sentiu ainda mais ódio. Estava prestes a lhe dizer o quão cretino ele era, quando os olhos do guia se abriram e a sua boca caiu em uma expressão de completo espanto. Ele pendeu para o lado pesadamente e quando despencou no chão, havia uma flecha atravessando seu peito, aos poucos fazendo seu sangue verter pelo chão.
Pensou que ia desmaiar quando algo a puxou do chão e ela foi levada no ar em um rápido movimento, assistindo umas figuras voarem no escuro, seguras em cipós. Quando aterrissou novamente, encontrou o famigerado pajé a observando como se fosse uma criança malcriada. Ele puxou o colar amaldiçoado de suas mãos e o balançou em frente ao seu rosto, esfregando as contas entre os dedos até que as contas que pareciam sementes secas se esfarelassem, mostrando contas de ouro.
— As aparências enganam — ele disse, em português perfeito — você pode voltar para sua cidade — ele apontou para um caminho entre as árvores — ou pode descobrir o que mais as aparências escondem — olhou em seus olhos e guardou o colar no cinto de roupagem rústica.

Antes que ele estivesse indo embora, já estava em seu encalço, procurando o que mais vinha sendo escondido dela. 

8 de julho de 2015

Feijoada, Insulina e Beauty and Perfect Body 2015. (conto - Will)



Quinta-feira

09h. 00min.
Pedro se trocava no vestiário da academia. Normalmente começava seu treino às 8, mas hoje havia acordado tarde e se atrasara. E sentia remorso por isso; não gostava de chegar atrasado para o treino. Levava os exercícios de musculação muito a sério. Era um assíduo frequentador de academias há dez anos. Ele era aquilo que muitos frequentadores e não frequentadores desses estabelecimentos costumam chamar de “bombado”. 28 anos de idade, 1 metro e setenta e cinco de altura e oitenta quilos de pura massa muscular. O percentual de gordura no corpo não chegava a dez por cento. Ia à academia seis dias por semana, seguia uma dieta rigorosa e era obcecado pelo universo bodybilder. Todos na academia o conheciam e muitos dos outros rapazes que também malhavam o admiravam por seu comprometimento e empenho nos exercícios. As garotas tinham uma queda por ele, pois além de um corpo perfeito, seu rosto não era de todo feio e havia um quê de fascínio no modo como ele falava e até nas piadas sem graça que contava.
Nas últimas semanas ele estava treinando mais pesado, pois decidira pela primeira vez participar de um concurso de fisiculturismo. Todos na academia o apoiavam e apostavam que suas chances eram boas de faturar a medalha de outro.

09hs. e 25min.
Já trocado, ele tirou da mochila o estojo que continha a seringa e a ampola. Ele costumava contar muitas histórias, fatos e descrever traços da sua personalidade para seus amigos da academia, mas havia uma coisa sobre ele que jamais contou para os outros. Algo que nem ele mesmo sabia por que ocultava, mas não queria que os outros soubessem. Pedro era diabético. Costumava aplicar a injeção de insulina antes de sair de casa. Não podia deixar de aplicar a dose diária. Seria totalmente imprudente.
Quebrou a ampola, sugou o conteúdo pela agulha para dentro da seringa e, sempre olhando para a porta de entrada do vestiário, ele aplicou na veia do braço esquerdo. Quando já estava no fim daquele procedimento, a porta se abriu e Dilcinho, outro frequentador assíduo da academia, entrou no recinto. Pedro disfarçou, recolhendo a seringa e pondo-a dentro da mochila. Ambos se cumprimentaram. Pedro guardou a mochila dentro do seu armário, dirigiu um sorriso constrangedor para Dilcinho e saiu do vestiário. Dilcinho meneou a cabeça positivamente para Pedro e antes de posicionar-se no mictório, olhou para o armário de Pedro e franziu a testa, tentando entender a seringa vazia na mão do mais dedicado aluno da academia.

10hs. e 10min.
Pedro já estava na metade do treino quando sentiu o estômago se retorcer. Imediatamente lembrou-se da feijoada. Normalmente ele seguia à risca a dieta, sem deixar escapar nenhum detalhe dos valores calórico, proteico e vitamínico do que ingeria, mas naquele dia, pelo fato de acordar atrasado, de saber que não lhe faria bem treinar em jejum, de não querer perder tempo preparando sua vitamina no liquidificador e de estar morrendo de fome, abriu a geladeira e lançou o olhar sobre o que estava lá e que poderia ser rapidamente ingerido por ele. Viu o resto da feijoada do dia anterior. Seu pai era um homem que respeitava a tradição de se servir feijoada nas quartas-feiras e impunha tal pratica aos demais da família. Pedro recusava-se a comer aquela explosão de cheiros, gorduras e calorias, porém naquela quinta-feira não resistiu; a fome era maior que a consciência de que aquilo pudesse não lhe fazer bem àquela hora da manhã, antes de um treino pesado na academia.
Quando estava deitado no aparelho, segurando pesos de mão de mais de 22 quilos, e fazendo movimentos de abrir e fechar os braços, num exercício chamado “crucifixo”, ele sentiu a primeira pontada, ignorou a dor e continuou sua rotina de treino. Contudo, quando estava na execução de um exercício cujo nome era peculiar, além de ser alvo de piadas de duplo sentido, chamado “rosca direta”, veio-lhe a segunda e mais forte dor na barriga. Conseguiu até mesmo ouvir a reviravolta em suas entranhas. O bolo alimentar composto por orelha, joelho e rabo de porco, além da carne seca e do feijão preto pareciam estar declarando claramente que não pretendiam permanecer em seu estômago por muito tempo.

10hs. e 30min.
Já não aguentando mais de dor, Pedro saiu às pressas da academia, com a mão no estômago, fazendo uma careta e se negando a dizer aos outros o que se estava se passando com ele. Realmente seria constrangedor revelar aos outros que estava indo embora por causa de uma diarreia que o arrebataria a qualquer momento. Nem mesmo se deu ao trabalho de despedir-se dos que ficaram treinando, o que gerou certa preocupação entre todos.

10hs. e 45min.
— O que será que aconteceu com o Pedro? — perguntou Regininha, que treinava no aparelho ao lado do último aparelho de musculação que Pedro usava antes de se levantar e ir embora.
— Não faço ideia — respondeu Mauro, um brutamontes que comia uma banana.
— Vai ver foi efeito das bombas que ele anda tomando — sugeriu Dilcinho, que acompanhava de perto a conversa.
— Bomba? Tá maluco? O Pedro não usa essas coisas — disse Mauro, indignado.
— Vou contar uma coisa que vi, mas só se vocês prometerem não contar para ninguém que fui eu quem disse, ok? — disse Dilcinho.
Mauro e Regininha se olharam por um segundo, depois olharam para Dilcinho e balançaram a cabeça, aceitando guardarem anonimato do seu nome.
— Sem querer, quando entrei no vestiário, vi o Pedro com uma seringa e uma ampola mão; tinha acabo de aplicar no braço.
Regininha e Mauro se olharam com os olhos arregalados.
— Agora o que vocês acham que era aquilo, complexo vitamínico? Acho que não, né — disse Dilcinho, eriçando uma das sobrancelhas.
— Mas ele disse que era contra o uso dessas coisas — falou Regininha.
— Todos dizem, mas a maioria usa — respondeu Dilcinho.
Mauro e Regininha iam fazer mais perguntas, mas Dilcinho disse já estar de saída, seu treino já havia acabado. Mas antes de ir, mais uma vez fez os dois prometerem que não contariam que fora ele a fonte da informação.

11hs. 00min.
Fátima acabara de chegar para o treino e ligara a esteira para andar uns dez minutos antes de começar os exercícios; na esteira ao lado estava Regininha, que acabara o treino e estava fazendo uns vinte minutos de aeróbico antes de ir embora. Ambas se cumprimentaram e em menos de trinta segundos, Regininha perguntou:
— Já soube da última que aconteceu aqui?
— O que foi?
— Sabe o Pedro, aquele bonitinho que vai participar do concurso de fisiculturismo?
— Claro, todo mundo o conhece. Até já me convidou para sair uma vez.
— Pois é, parece que passou mal e teve que sair às pressas do treino.
— Nossa! E é coisa séria?
— O que se comenta por aí — ela parou de falar, olhou para os lados, depois continuou — é que ele passou mal por causa dos anabolizantes que andava tomando justamente para ter mais chances de vencer o concurso.
— Caramba. Não pensei que ele fosse capaz dessas coisas.
— Eu também não. Disseram que eram essas coisas de hormônio para cavalo. Mas não entendo nada disso.
— Que é isso gente! Não compensa se drogar só para ter mais chances de ganhar um concurso de fisiculturismo.
— Mas acha que os outros competidores também não usam essas coisas?
— E onde está o Pedro agora?
— Ouvi alguém comentando que ele devia estar no hospital. E certamente quando isso acontece, os usuários costumam ficar muito mal, com sequelas gravíssimas. Isso quando sobrevivem, é claro.
— E como souberam que ele usava essas coisas?
— Ah, isso não sei. Só estou contando o que todo mundo já está comentando.
Fátima ia fazer mais perguntas, mas Regininha despediu-se dizendo que já estava atrasada para um compromisso. Fátima balançou a cabeça e refletiu sobre o quão mal poderia fazer a vaidade de um rapaz jovem que se drogava com hormônio para cavalo unicamente para ganhar um concurso de fisiculturismo.

12hs. 00min.
O telefone da recepção da academia tocou. Era Evilásio, o organizador do concurso de fisiculturismo “Beuty e Perfect Body 2015”, evento realizado há mais de dez anos e que gozava de certo prestígio entre frequentadores de academias de musculação e compradores do mercado de suplementos e materiais esportivos; uma prova desse prestígio fora a cobertura dada por uma emissora de tv do concurso realizado no ano anterior. Evilásio parecia tenso; queria falar com Bruno, o dono da academia.
— Fala Evilásio, tudo bem? — disse Bruno.
— Não está nada bem.
— O que aconteceu?
— Como assim “o que aconteceu?”. Não ficou sabendo do seu aluno, o Pedro?
— Cheguei faz apenas uma hora. Disseram que ele passou mal.
Evilásio bufou do outro lado da linha.
— Pois é Bruno, o que acontece é que Rogério, um dos participantes do concurso, faz parte de um grupo no whats app, esse aplicativo para smartphones.
— Eu sei o que é whats app, não precisa explicar.
— Pois quem precisa explicar é você, porque o Rogério ficou sabendo, por meio desse grupo, do qual fazem parte alguns alunos da sua academia, que o Pedro passou mal porque teve uma overdose de anabolizantes que injetou aí mesmo, no vestiário da sua academia. Tudo com o propósito de levar vantagem sobre os demais competidores do concurso.
— O Pedro? Aplicando anabolizantes? Na minha academia?
— Não ficou sabendo?
— Não.
— Hum, típico; sempre o último a saber. Sabe o estrago que uma coisa dessas pode causar ao meu concurso e à sua academia?
— Claro que sei. Mas precisamos ter certeza antes de tomarmos qualquer atitude e acabar cometendo uma...
— Eu é que não vou ficar sem fazer nada diante dessa boataria toda. Estou cancelando a inscrição dele, sumariamente.
— Não acha que está se precipitando?
— Eu? Diz isso porque não sabe o que andei ouvindo da sua academia nessa última hora.
— O que andaram dizendo? — Bruno parecia preocupado.
— Entre outras coisas que, se ele fez isso aí dentro, só podia ser porque contava com seu consentimento.
— Isso é absurdo. Todos sabem que sou um dos que mais criticam quem faz uso dessas substâncias.
— Por isso mesmo estão descendo a lenha em você.

14hs. e 17min.
Pedro tomava seu terceiro copo de água de coco; tentava se reidratar depois de mais de uma hora e meia passada no banheiro colocando quase todos os bofes para fora. Nunca tivera uma diarreia como aquela. As dores e cólicas estomacais foram quase insuportáveis.