3 de agosto de 2008

MUNDO DE ILUSÕES (Conto)

Logo de manhã, no programa de culinária, um gourmet ensinava o preparo de um delicioso e prático crepe recheado com trufas e servido com geleia de morango e suco de laranja, adoçado com adoçante espartano, “super prático e nutritivo, para começar bem o dia com um café da manhã reforçado” repetia a apresentadora do programa, depois ela dava uma bela mordida no crepe, olhava para câmera, fechava os olhos e gemia: humm! Me dava água na boca, mas eu tinha que me contentar com um pão com manteiga e meio copo de café misturado com leite em pó que vinha na cesta básica que eu recebia da metalúrgica onde eu trabalhava; eu trocava de canal e lá estava a “bomba” do dia escrito no gerador de caracteres, no rodapé do vídeo a frase: “exclusivo: saiba tudo sobre o casamento do ano” e a voz irritante da repórter dando todos os detalhes do casamento de um artista famoso: os convidados chegando nos seus carros importados, a igreja enfeitada com rosas vermelhas e uma orquestra mandando ver na cantata 147 de Bach, seguido de Ave Maria, interpretado pelo cantor Agnaldo Rayol – sempre ele –, vestido todo de branco. A noiva, linda, vestia um vestido da grife de Gianni Versace, usando sobre a cabeça uma diadema ornada por minúsculas miçangas e enormes pedras preciosas, comentava-se que o anel de noivado custara trinta e cinco mil reais e a festa do casamento outros trezentos e sessenta mil; o noivo, famoso ator da novela das oito, sorria e abraçava os convidados e a noiva modelo – sempre modelo ou empresária, ou até mesmo modelo filha de um grande empresário –, sempre tomando o cuidado de se manter na pose ideal para as dezenas de fotógrafos e cinegrafistas de todas as emissoras de televisão e alguns sites de fofoca da internet. A repórter de voz irritante especulava que, provavelmente, os noivos passarão a lua de mel na Austrália, antes porém, eles darão uma rápida passada em Paris, para manter o itinerário tradicional de qualquer casal em bodas, e também na Nova Zelândia, para dar um toque exótico e moderno ao acontecimento do ano, mas logo os recém-casados teriam que voltar para o Brasil, já que o famoso ator já estava escalado para a nova novela das sete.
Ao meio-dia começava a enxurrada de coloridos e esdrúxulos programas esportivos recheados por merchandaising de pilha, aparelhos de barbear, cervejas, a porra da câmera filmadora e até pneus. Num desses programas o apresentador chamou a reportagem de menos de um minuto – tempo reservado a todos os esportes que não fossem futebol – sobre a volta ao mundo dos veleiros, quando a reportagem acabou o apresentador fez o trocadilho: “já que nós vimos o timão do veleiro, vamos aproveitar e falar do timão, o corinthians”, nessa hora meu nariz escorreu e eu podia jurar que era meu cérebro querendo fugir da minha cabeça para não continuar assistindo aquilo. A programação seguia, e eu seguia trocando de canal, procurando salvação.
Um belo carro, Mazda, preto, reluzente, importado, com gps e ar refrigerado, por apenas e tão somente setenta mil reais; num filme norte-americano, o ator saía com um carro como esse para fazer compras no supermercado e no seriado que passava na hora do almoço a atriz chegava na academia onde fazia exercícios para manter a boa forma do seu corpo de mulher balzaquiana num Porsche, modelo conversível. Comédias enlatadas americanas, piadas americanas, risos americanos, Will Smith americano; eu não via graça nenhuma. À tarde, tome novela: novela mexicana nova, novela brasileira em reprise, novela mexicana em reprise e filmes já reprisados mais de uma centena de vezes:

1. Os Aventureiros do Bairro Proibido
2. O Rapto do Menino Dourado
3. Comando Para Matar
4. Os Gunes
5. Curtindo a Vida a Doidado

À tarde também passavam na TV os programas destinados à moderna mulher brasileira. Eram programas que atendiam a todas as necessidades da vida pós-industrial das mulheres; eles ensinavam as mulheres a: fazer risoto de frango, costurar emendas em calças rasgadas; combinar cores de echarpes e saias santropê; como se exercitar usando utensílios domésticos como o cabo da vassoura e a tábua de passar roupa; como fazer sabão e porta-retratos com palitos de sorvete em casa; como dobrar as peças de roupas, inclusive meias e cuecas, para caberem melhor no guarda-roupas; como aprender a nova dança que vai abalar o carnaval em salvador; a ficar por dentro da nova técnica de cirurgia plástica para arrebitar a ponta do nariz sem a necessidade de anestesia e do tratamento de pele com a lama do vulcão do oriente ou o tratamento com o cogumelo do sol. Isso sem falar nas fofocas dos artistas, nos resumos das novelas, nos desfiles de sapatos, de cães vestindo coletes de crochê, de biquínis e de mulheres nuas com os corpos pintados sob o pretexto de servirem como modelo para a “pintura artística”, e sem falar também nas seríssimas discussões acaloradas entre muitos convidados famosos – ex-participantes de realityshows, modelos e atrizes que saíam nuas em revistas masculinas e cantores que um dia já fizeram sucesso – sobre temas polêmicos como a mudança de sexo dos transexuais, o beijo do casal gay na novela, o sexo nos bailes funk, o relacionamento de mulheres mais velhas com garotões, a pensão alimentícia não paga pelo jogador de futebol da seleção ou pelo decadente pagodeiro aos seus filhos bastardos, o uso indiscriminado do botox, as novas próteses de silicone recém lançadas no mercado da beleza estética e as vantagens e desvantagens de uma lipoaspiração ou de uma lipoescultura.
E não parava por aí, à noite voltavam as novelas mexicanas inéditas, as novelas brasileiras em reprise, as novelas mexicanas em reprise e as novelas brasileiras inéditas – se é que se pode usar a palavra “inédita” para designar as novelas em exibição pela primeira vez –. Entre uma novela e outra vinham os jornais, de emissoras diferentes mas todos dando as mesmas notícias, da mesma forma, às vezes, com as mesmas palavras, e com as mesmas imagens. Depois, mais filmes e seriados enlatados americanos, e para fechar as minhas quinze horas de programação televisiva com chave de bosta, assisto ao apresentador e entrevistador, e sempre sorridente, mostrar toda a coleção de obras de arte na casa de seu amicíssimo político, dando origem e preço das porcelanas, quadros, vasos, esculturas e tapetes vindos dos países da Europa e que ornamentavam as paredes, cômodas e o chão de sua mansão; poucos dias depois esse mesmo político estaria sendo preso pela polícia federal por várias acusações, entre elas o repasse de dinheiro para um operador financeiro comprar aquelas mesmas obras de arte.
Eu podia jurar de pés juntos que, se eu tivesse uma arma ao lado da cama, daria um tiro na televisão e outro na minha têmpora. Estava tudo ali. O que eu mais queria e o que mais eu odiava.