Quinta-feira
09h.
00min.
Pedro se trocava no
vestiário da academia. Normalmente começava seu treino às 8, mas hoje havia acordado
tarde e se atrasara. E sentia remorso por isso; não gostava de chegar atrasado
para o treino. Levava os exercícios de musculação muito a sério. Era um assíduo
frequentador de academias há dez anos. Ele era aquilo que muitos frequentadores
e não frequentadores desses estabelecimentos costumam chamar de “bombado”. 28
anos de idade, 1 metro e setenta e cinco de altura e oitenta quilos de pura
massa muscular. O percentual de gordura no corpo não chegava a dez por cento.
Ia à academia seis dias por semana, seguia uma dieta rigorosa e era obcecado
pelo universo bodybilder. Todos na
academia o conheciam e muitos dos outros rapazes que também malhavam o
admiravam por seu comprometimento e empenho nos exercícios. As garotas tinham
uma queda por ele, pois além de um corpo perfeito, seu rosto não era de todo feio
e havia um quê de fascínio no modo como ele falava e até nas piadas sem graça
que contava.
Nas últimas semanas ele
estava treinando mais pesado, pois decidira pela primeira vez participar de um
concurso de fisiculturismo. Todos na academia o apoiavam e apostavam que suas
chances eram boas de faturar a medalha de outro.
09hs. e 25min.
Já trocado, ele tirou
da mochila o estojo que continha a seringa e a ampola. Ele costumava contar
muitas histórias, fatos e descrever traços da sua personalidade para seus amigos
da academia, mas havia uma coisa sobre ele que jamais contou para os outros.
Algo que nem ele mesmo sabia por que ocultava, mas não queria que os outros
soubessem. Pedro era diabético. Costumava aplicar a injeção de insulina antes
de sair de casa. Não podia deixar de aplicar a dose diária. Seria totalmente
imprudente.
Quebrou a ampola, sugou
o conteúdo pela agulha para dentro da seringa e, sempre olhando para a porta de
entrada do vestiário, ele aplicou na veia do braço esquerdo. Quando já estava
no fim daquele procedimento, a porta se abriu e Dilcinho, outro frequentador
assíduo da academia, entrou no recinto. Pedro disfarçou, recolhendo a seringa e
pondo-a dentro da mochila. Ambos se cumprimentaram. Pedro guardou a mochila
dentro do seu armário, dirigiu um sorriso constrangedor para Dilcinho e saiu do
vestiário. Dilcinho meneou a cabeça positivamente para Pedro e antes de posicionar-se
no mictório, olhou para o armário de Pedro e franziu a testa, tentando entender
a seringa vazia na mão do mais dedicado aluno da academia.
10hs. e 10min.
Pedro já estava na
metade do treino quando sentiu o estômago se retorcer. Imediatamente lembrou-se
da feijoada. Normalmente ele seguia à risca a dieta, sem deixar escapar nenhum
detalhe dos valores calórico, proteico e vitamínico do que ingeria, mas naquele
dia, pelo fato de acordar atrasado, de saber que não lhe faria bem treinar em
jejum, de não querer perder tempo preparando sua vitamina no liquidificador e
de estar morrendo de fome, abriu a geladeira e lançou o olhar sobre o que
estava lá e que poderia ser rapidamente ingerido por ele. Viu o resto da
feijoada do dia anterior. Seu pai era um homem que respeitava a tradição de se
servir feijoada nas quartas-feiras e impunha tal pratica aos demais da família.
Pedro recusava-se a comer aquela explosão de cheiros, gorduras e calorias,
porém naquela quinta-feira não resistiu; a fome era maior que a consciência de
que aquilo pudesse não lhe fazer bem àquela hora da manhã, antes de um treino
pesado na academia.
Quando estava deitado
no aparelho, segurando pesos de mão de mais de 22 quilos, e fazendo movimentos
de abrir e fechar os braços, num exercício chamado “crucifixo”, ele sentiu a
primeira pontada, ignorou a dor e continuou sua rotina de treino. Contudo,
quando estava na execução de um exercício cujo nome era peculiar, além de ser alvo
de piadas de duplo sentido, chamado “rosca direta”, veio-lhe a segunda e mais
forte dor na barriga. Conseguiu até mesmo ouvir a reviravolta em suas
entranhas. O bolo alimentar composto por orelha, joelho e rabo de porco, além
da carne seca e do feijão preto pareciam estar declarando claramente que não
pretendiam permanecer em seu estômago por muito tempo.
10hs. e 30min.
Já não aguentando mais
de dor, Pedro saiu às pressas da academia, com a mão no estômago, fazendo uma
careta e se negando a dizer aos outros o que se estava se passando com ele.
Realmente seria constrangedor revelar aos outros que estava indo embora por
causa de uma diarreia que o arrebataria a qualquer momento. Nem mesmo se deu ao
trabalho de despedir-se dos que ficaram treinando, o que gerou certa
preocupação entre todos.
10hs. e 45min.
— O que será que
aconteceu com o Pedro? — perguntou Regininha, que treinava no aparelho ao lado
do último aparelho de musculação que Pedro usava antes de se levantar e ir
embora.
— Não faço ideia —
respondeu Mauro, um brutamontes que comia uma banana.
— Vai ver foi efeito
das bombas que ele anda tomando — sugeriu Dilcinho, que acompanhava de perto a
conversa.
— Bomba? Tá maluco? O
Pedro não usa essas coisas — disse Mauro, indignado.
— Vou contar uma coisa
que vi, mas só se vocês prometerem não contar para ninguém que fui eu quem
disse, ok? — disse Dilcinho.
Mauro e Regininha se
olharam por um segundo, depois olharam para Dilcinho e balançaram a cabeça,
aceitando guardarem anonimato do seu nome.
— Sem querer, quando
entrei no vestiário, vi o Pedro com uma seringa e uma ampola mão; tinha acabo
de aplicar no braço.
Regininha e Mauro se
olharam com os olhos arregalados.
— Agora o que vocês acham
que era aquilo, complexo vitamínico? Acho que não, né — disse Dilcinho,
eriçando uma das sobrancelhas.
— Mas ele disse que era
contra o uso dessas coisas — falou Regininha.
— Todos dizem, mas a
maioria usa — respondeu Dilcinho.
Mauro e Regininha iam
fazer mais perguntas, mas Dilcinho disse já estar de saída, seu treino já havia
acabado. Mas antes de ir, mais uma vez fez os dois prometerem que não contariam
que fora ele a fonte da informação.
11hs. 00min.
Fátima acabara de
chegar para o treino e ligara a esteira para andar uns dez minutos antes de
começar os exercícios; na esteira ao lado estava Regininha, que acabara o
treino e estava fazendo uns vinte minutos de aeróbico antes de ir embora. Ambas
se cumprimentaram e em menos de trinta segundos, Regininha perguntou:
— Já soube da última
que aconteceu aqui?
— O que foi?
— Sabe o Pedro, aquele
bonitinho que vai participar do concurso de fisiculturismo?
— Claro, todo mundo o conhece.
Até já me convidou para sair uma vez.
— Pois é, parece que
passou mal e teve que sair às pressas do treino.
— Nossa! E é coisa
séria?
— O que se comenta por
aí — ela parou de falar, olhou para os lados, depois continuou — é que ele
passou mal por causa dos anabolizantes que andava tomando justamente para ter
mais chances de vencer o concurso.
— Caramba. Não pensei
que ele fosse capaz dessas coisas.
— Eu também não.
Disseram que eram essas coisas de hormônio para cavalo. Mas não entendo nada
disso.
— Que é isso gente! Não
compensa se drogar só para ter mais chances de ganhar um concurso de
fisiculturismo.
— Mas acha que os
outros competidores também não usam essas coisas?
— E onde está o Pedro
agora?
— Ouvi alguém
comentando que ele devia estar no hospital. E certamente quando isso acontece,
os usuários costumam ficar muito mal, com sequelas gravíssimas. Isso quando
sobrevivem, é claro.
— E como souberam que
ele usava essas coisas?
— Ah, isso não sei. Só
estou contando o que todo mundo já está comentando.
Fátima ia fazer mais
perguntas, mas Regininha despediu-se dizendo que já estava atrasada para um
compromisso. Fátima balançou a cabeça e refletiu sobre o quão mal poderia fazer
a vaidade de um rapaz jovem que se drogava com hormônio para cavalo unicamente
para ganhar um concurso de fisiculturismo.
12hs. 00min.
O telefone da recepção
da academia tocou. Era Evilásio, o organizador do concurso de fisiculturismo “Beuty
e Perfect Body 2015”, evento realizado há mais de dez anos e que gozava de
certo prestígio entre frequentadores de academias de musculação e compradores do
mercado de suplementos e materiais esportivos; uma prova desse prestígio fora a
cobertura dada por uma emissora de tv do concurso realizado no ano anterior.
Evilásio parecia tenso; queria falar com Bruno, o dono da academia.
— Fala Evilásio, tudo
bem? — disse Bruno.
— Não está nada bem.
— O que aconteceu?
— Como assim “o que
aconteceu?”. Não ficou sabendo do seu aluno, o Pedro?
— Cheguei faz apenas
uma hora. Disseram que ele passou mal.
Evilásio bufou do outro
lado da linha.
— Pois é Bruno, o que
acontece é que Rogério, um dos participantes do concurso, faz parte de um grupo
no whats app, esse aplicativo para smartphones.
— Eu sei o que é whats
app, não precisa explicar.
— Pois quem precisa
explicar é você, porque o Rogério ficou sabendo, por meio desse grupo, do qual
fazem parte alguns alunos da sua academia, que o Pedro passou mal porque teve
uma overdose de anabolizantes que injetou aí mesmo, no vestiário da sua academia.
Tudo com o propósito de levar vantagem sobre os demais competidores do concurso.
— O Pedro? Aplicando
anabolizantes? Na minha academia?
— Não ficou sabendo?
— Não.
— Hum, típico; sempre o
último a saber. Sabe o estrago que uma coisa dessas pode causar ao meu concurso
e à sua academia?
— Claro que sei. Mas
precisamos ter certeza antes de tomarmos qualquer atitude e acabar cometendo
uma...
— Eu é que não vou
ficar sem fazer nada diante dessa boataria toda. Estou cancelando a inscrição
dele, sumariamente.
— Não acha que está se
precipitando?
— Eu? Diz isso porque
não sabe o que andei ouvindo da sua academia nessa última hora.
— O que andaram
dizendo? — Bruno parecia preocupado.
— Entre outras coisas
que, se ele fez isso aí dentro, só podia ser porque contava com seu
consentimento.
— Isso é absurdo. Todos
sabem que sou um dos que mais criticam quem faz uso dessas substâncias.
— Por isso mesmo estão
descendo a lenha em você.
14hs. e 17min.
Pedro tomava seu
terceiro copo de água de coco; tentava se reidratar depois de mais de uma hora
e meia passada no banheiro colocando quase todos os bofes para fora. Nunca
tivera uma diarreia como aquela. As dores e cólicas estomacais foram quase
insuportáveis.
Agora, esparramado no
sofá de casa, exausto e ainda sentindo dores na barriga, essas agora musculares,
por causa do esforço físico que fizera para expelir o que lhe causara tamanho
desarranjo nas entranhas.
Passou
despretensiosamente o olhar pelo aparelho celular e viu as luzes piscando,
indicando que ele havia recebido mensagem. Ele pegou o aparelho e ficou
surpreso com a quantidade de mensagens e ligações perdidas que havia no
aparelho.
Ele simplesmente não
entendeu, e ficou estarrecido, quando leu as mensagens de Evilásio
comunicando-o sobre sua desclassificação do concurso “Beuty e Perfect Body 2015”
por conduta desportiva e de Bruno, dono da academia que frequentava, cancelando
sua matrícula e pedindo que ele não voltasse mais a frequentar a academia “até
as coisas se resolverem”. Pedro não sabia que coisas eram essas que deveriam se
resolver.
Ao acessar sua conta
numa rede social, notou que ele havia sido marcado em muitas postagens cujo
título eram “vergonha” e “ele nunca me enganou”.
Ele não fazia ideia do
que se tratava tudo aquilo que estava sendo dito a seu respeito. Resolveu ler
mais coisas que escreveram sobre si e ligar para os números das ligações
perdidas no celular, mas não teve tempo de pensar mais nada, pois uma onda de
calafrio percorreu toda sua espinha e o estômago pareceu urrar com o nó que as
tripas pareciam estar dando.
Era o segundo round da diarreia que estava por vir.
Pedro mal teve tempo de chegar ao banheiro antes de sucumbir mais uma vez ao
desarranjo estomacal.