23 de fevereiro de 2018

Feijoada, Insulina e Beauty and Perfect Body 2015 (Conto).





Quinta-feira

09h. 00min.
Pedro se trocava no vestiário da academia. Normalmente começava seu treino às 8, mas hoje havia acordado tarde e se atrasara. E sentia remorso por isso; não gostava de chegar atrasado para o treino. Levava os exercícios de musculação muito a sério. Era um assíduo frequentador de academias há dez anos. Ele era aquilo que muitos frequentadores e não frequentadores desses estabelecimentos costumam chamar de “bombado”. 28 anos de idade, 1 metro e setenta e cinco de altura e oitenta quilos de pura massa muscular. O percentual de gordura no corpo não chegava a dez por cento. Ia à academia seis dias por semana, seguia uma dieta rigorosa e era obcecado pelo universo bodybilder. Todos na academia o conheciam e muitos dos outros rapazes que também malhavam o admiravam por seu comprometimento e empenho nos exercícios. As garotas tinham uma queda por ele, pois além de um corpo perfeito, seu rosto não era de todo feio e havia um quê de fascínio no modo como ele falava e até nas piadas sem graça que contava.
Nas últimas semanas ele estava treinando mais pesado, pois decidira pela primeira vez participar de um concurso de fisiculturismo. Todos na academia o apoiavam e apostavam que suas chances eram boas de faturar a medalha de outro.

09hs. e 25min.
Já trocado, ele tirou da mochila o estojo que continha a seringa e a ampola. Ele costumava contar muitas histórias, fatos e descrever traços da sua personalidade para seus amigos da academia, mas havia uma coisa sobre ele que jamais contou para os outros. Algo que nem ele mesmo sabia por que ocultava, mas não queria que os outros soubessem. Pedro era diabético. Costumava aplicar a injeção de insulina antes de sair de casa. Não podia deixar de aplicar a dose diária. Seria totalmente imprudente.
Quebrou a ampola, sugou o conteúdo pela agulha para dentro da seringa e, sempre olhando para a porta de entrada do vestiário, ele aplicou na veia do braço esquerdo. Quando já estava no fim daquele procedimento, a porta se abriu e Dilcinho, outro frequentador assíduo da academia, entrou no recinto. Pedro disfarçou, recolhendo a seringa e pondo-a dentro da mochila. Ambos se cumprimentaram. Pedro guardou a mochila dentro do seu armário, dirigiu um sorriso constrangedor para Dilcinho e saiu do vestiário. Dilcinho meneou a cabeça positivamente para Pedro e antes de posicionar-se no mictório, olhou para o armário de Pedro e franziu a testa, tentando entender a seringa vazia na mão do mais dedicado aluno da academia.

10hs. e 10min.
Pedro já estava na metade do treino quando sentiu o estômago se retorcer. Imediatamente lembrou-se da feijoada. Normalmente ele seguia à risca a dieta, sem deixar escapar nenhum detalhe dos valores calórico, proteico e vitamínico do que ingeria, mas naquele dia, pelo fato de acordar atrasado, de saber que não lhe faria bem treinar em jejum, de não querer perder tempo preparando sua vitamina no liquidificador e de estar morrendo de fome, abriu a geladeira e lançou o olhar sobre o que estava lá e que poderia ser rapidamente ingerido por ele. Viu o resto da feijoada do dia anterior. Seu pai era um homem que respeitava a tradição de se servir feijoada nas quartas-feiras e impunha tal pratica aos demais da família. Pedro recusava-se a comer aquela explosão de cheiros, gorduras e calorias, porém naquela quinta-feira não resistiu; a fome era maior que a consciência de que aquilo pudesse não lhe fazer bem àquela hora da manhã, antes de um treino pesado na academia.
Quando estava deitado no aparelho, segurando pesos de mão de mais de 22 quilos, e fazendo movimentos de abrir e fechar os braços, num exercício chamado “crucifixo”, ele sentiu a primeira pontada, ignorou a dor e continuou sua rotina de treino. Contudo, quando estava na execução de um exercício cujo nome era peculiar, além de ser alvo de piadas de duplo sentido, chamado “rosca direta”, veio-lhe a segunda e mais forte dor na barriga. Conseguiu até mesmo ouvir a reviravolta em suas entranhas. O bolo alimentar composto por orelha, joelho e rabo de porco, além da carne seca e do feijão preto pareciam estar declarando claramente que não pretendiam permanecer em seu estômago por muito tempo.

10hs. e 30min.
Já não aguentando mais de dor, Pedro saiu às pressas da academia, com a mão no estômago, fazendo uma careta e se negando a dizer aos outros o que se estava se passando com ele. Realmente seria constrangedor revelar aos outros que estava indo embora por causa de uma diarreia que o arrebataria a qualquer momento. Nem mesmo se deu ao trabalho de despedir-se dos que ficaram treinando, o que gerou certa preocupação entre todos.

10hs. e 45min.
— O que será que aconteceu com o Pedro? — perguntou Regininha, que treinava no aparelho ao lado do último aparelho de musculação que Pedro usava antes de se levantar e ir embora.
— Não faço ideia — respondeu Mauro, um brutamontes que comia uma banana.
— Vai ver foi efeito das bombas que ele anda tomando — sugeriu Dilcinho, que acompanhava de perto a conversa.
— Bomba? Tá maluco? O Pedro não usa essas coisas — disse Mauro, indignado.
— Vou contar uma coisa que vi, mas só se vocês prometerem não contar para ninguém que fui eu quem disse, ok? — disse Dilcinho.
Mauro e Regininha se olharam por um segundo, depois olharam para Dilcinho e balançaram a cabeça, aceitando guardarem anonimato do seu nome.
— Sem querer, quando entrei no vestiário, vi o Pedro com uma seringa e uma ampola mão; tinha acabo de aplicar no braço.
Regininha e Mauro se olharam com os olhos arregalados.
— Agora o que vocês acham que era aquilo, complexo vitamínico? Acho que não, né — disse Dilcinho, eriçando uma das sobrancelhas.
— Mas ele disse que era contra o uso dessas coisas — falou Regininha.
— Todos dizem, mas a maioria usa — respondeu Dilcinho.
Mauro e Regininha iam fazer mais perguntas, mas Dilcinho disse já estar de saída, seu treino já havia acabado. Mas antes de ir, mais uma vez fez os dois prometerem que não contariam que fora ele a fonte da informação.

11hs. 00min.
Fátima acabara de chegar para o treino e ligara a esteira para andar uns dez minutos antes de começar os exercícios; na esteira ao lado estava Regininha, que acabara o treino e estava fazendo uns vinte minutos de aeróbico antes de ir embora. Ambas se cumprimentaram e em menos de trinta segundos, Regininha perguntou:
— Já soube da última que aconteceu aqui?
— O que foi?
— Sabe o Pedro, aquele bonitinho que vai participar do concurso de fisiculturismo?
— Claro, todo mundo o conhece. Até já me convidou para sair uma vez.
— Pois é, parece que passou mal e teve que sair às pressas do treino.
— Nossa! E é coisa séria?
— O que se comenta por aí — ela parou de falar, olhou para os lados, depois continuou — é que ele passou mal por causa dos anabolizantes que andava tomando justamente para ter mais chances de vencer o concurso.
— Caramba. Não pensei que ele fosse capaz dessas coisas.
— Eu também não. Disseram que eram essas coisas de hormônio para cavalo. Mas não entendo nada disso.
— Que é isso gente! Não compensa se drogar só para ter mais chances de ganhar um concurso de fisiculturismo.
— Mas acha que os outros competidores também não usam essas coisas?
— E onde está o Pedro agora?
— Ouvi alguém comentando que ele devia estar no hospital. E certamente quando isso acontece, os usuários costumam ficar muito mal, com sequelas gravíssimas. Isso quando sobrevivem, é claro.
— E como souberam que ele usava essas coisas?
— Ah, isso não sei. Só estou contando o que todo mundo já está comentando.
Fátima ia fazer mais perguntas, mas Regininha despediu-se dizendo que já estava atrasada para um compromisso. Fátima balançou a cabeça e refletiu sobre o quão mal poderia fazer a vaidade de um rapaz jovem que se drogava com hormônio para cavalo unicamente para ganhar um concurso de fisiculturismo.

12hs. 00min.
O telefone da recepção da academia tocou. Era Evilásio, o organizador do concurso de fisiculturismo “Beuty e Perfect Body 2015”, evento realizado há mais de dez anos e que gozava de certo prestígio entre frequentadores de academias de musculação e compradores do mercado de suplementos e materiais esportivos; uma prova desse prestígio fora a cobertura dada por uma emissora de tv do concurso realizado no ano anterior. Evilásio parecia tenso; queria falar com Bruno, o dono da academia.
— Fala Evilásio, tudo bem? — disse Bruno.
— Não está nada bem.
— O que aconteceu?
— Como assim “o que aconteceu?”. Não ficou sabendo do seu aluno, o Pedro?
— Cheguei faz apenas uma hora. Disseram que ele passou mal.
Evilásio bufou do outro lado da linha.
— Pois é Bruno, o que acontece é que Rogério, um dos participantes do concurso, faz parte de um grupo no whats app, esse aplicativo para smartphones.
— Eu sei o que é whats app, não precisa explicar.
— Pois quem precisa explicar é você, porque o Rogério ficou sabendo, por meio desse grupo, do qual fazem parte alguns alunos da sua academia, que o Pedro passou mal porque teve uma overdose de anabolizantes que injetou aí mesmo, no vestiário da sua academia. Tudo com o propósito de levar vantagem sobre os demais competidores do concurso.
— O Pedro? Aplicando anabolizantes? Na minha academia?
— Não ficou sabendo?
— Não.
— Hum, típico; sempre o último a saber. Sabe o estrago que uma coisa dessas pode causar ao meu concurso e à sua academia?
— Claro que sei. Mas precisamos ter certeza antes de tomarmos qualquer atitude e acabar cometendo uma...
— Eu é que não vou ficar sem fazer nada diante dessa boataria toda. Estou cancelando a inscrição dele, sumariamente.
— Não acha que está se precipitando?
— Eu? Diz isso porque não sabe o que andei ouvindo da sua academia nessa última hora.
— O que andaram dizendo? — Bruno parecia preocupado.
— Entre outras coisas que, se ele fez isso aí dentro, só podia ser porque contava com seu consentimento.
— Isso é absurdo. Todos sabem que sou um dos que mais criticam quem faz uso dessas substâncias.
— Por isso mesmo estão descendo a lenha em você.

14hs. e 17min.
Pedro tomava seu terceiro copo de água de coco; tentava se reidratar depois de mais de uma hora e meia passada no banheiro colocando quase todos os bofes para fora. Nunca tivera uma diarreia como aquela. As dores e cólicas estomacais foram quase insuportáveis.
Agora, esparramado no sofá de casa, exausto e ainda sentindo dores na barriga, essas agora musculares, por causa do esforço físico que fizera para expelir o que lhe causara tamanho desarranjo nas entranhas.
Passou despretensiosamente o olhar pelo aparelho celular e viu as luzes piscando, indicando que ele havia recebido mensagem. Ele pegou o aparelho e ficou surpreso com a quantidade de mensagens e ligações perdidas que havia no aparelho.
Ele simplesmente não entendeu, e ficou estarrecido, quando leu as mensagens de Evilásio comunicando-o sobre sua desclassificação do concurso “Beuty e Perfect Body 2015” por conduta desportiva e de Bruno, dono da academia que frequentava, cancelando sua matrícula e pedindo que ele não voltasse mais a frequentar a academia “até as coisas se resolverem”. Pedro não sabia que coisas eram essas que deveriam se resolver.
Ao acessar sua conta numa rede social, notou que ele havia sido marcado em muitas postagens cujo título eram “vergonha” e “ele nunca me enganou”.
Ele não fazia ideia do que se tratava tudo aquilo que estava sendo dito a seu respeito. Resolveu ler mais coisas que escreveram sobre si e ligar para os números das ligações perdidas no celular, mas não teve tempo de pensar mais nada, pois uma onda de calafrio percorreu toda sua espinha e o estômago pareceu urrar com o nó que as tripas pareciam estar dando.
Era o segundo round da diarreia que estava por vir. Pedro mal teve tempo de chegar ao banheiro antes de sucumbir mais uma vez ao desarranjo estomacal.