— A coisa é simples e rápida —, disse Antunes, o cara que me contratou
para o serviço. — É chegar, fazer o serviço e sair, um in-out, — ele completou. Ele gostava de usar palavras e termos em
inglês enquanto falava. Era daquele tipo de gente que falava “curtir a night” e “tomar um sunday”; talvez achasse aquilo algum tipo de demonstração de erudição
ou sinal de que era um cara descolado por falar daquele jeito. Gente besta
gosta de fazer essas coisas.
— Tem que ser na terça; pois na quarta o cara de Brasília vai depor numa
sessão extraordinária da CPI e dar com a
língua nos dentes. Vai citar o nome dele, e ele não pode ir lá para depor,
compreende?
Ele dizia essas coisas com um tom grave na voz. Queria que eu tivesse
certeza da importância do negócio e que não deveria falhar.
Eu disse que entendia. E que ele podia ficar despreocupado que eu daria
conta do serviço e que o problema seria rapidamente resolvido.
E dois dias depois, dezesseis de fevereiro, eu estava desembarcando em
Belém, no Pará, na tarde do dia dezessete, em pleno carnaval, para “dar um
jeito no cara”. O cara era um tal de Dionísio; era um laranja num esquema de
uns políticos de Brasília. Ele aceitou que usassem o nome dele como dono de algumas
empresas em troca de alguns poucos milhares de reais por mês. Disseram para ele
que era negócio sem risco, sem chance de dar chabu; ele acreditou. Mas deu
chabu. O esquema foi denunciado, a polícia federal investigou e a casa caiu; um
delator, que aceitou a proposta de delação premiada oferecida pela promotoria, iria
entregar todo o esquema, a começar pelo nome de Dionísio. Ele era um arquivo
vivo que deveria ser apagado para não entregar os demais.
Eu era a foice que deveria decepá-lo.
Dionísio, como todo tolo, não se apercebia do que estava se passando, e
despreocupadamente estava no Pará para curtir o famoso e tradicional carnaval
de rua. A Bumbarqueira, termo paraense que significava “grande festa” reunia
todo tipo de celebrações como os cordões de bichos, os batuques, as congadas,
as folias típicas da quadra carnavalesca, as bandas de fanfarra, os blocos, os
fofos e bandos de mascarados dos municípios paraenses
O calor era infernal, devia estar fazendo uns trinta e sete graus.
Assim que me hospedei no Ver-o-Peso hotel, na Bulevar Castilhos França, fui a
um bar perto da praça do Relógio. Assim que entrei, avistei algo que parecia
mais uma visagem do que uma pessoa. Uma mulher, linda, loira e sozinha, sentada
numa das cadeiras junto ao balcão, à sua frente um copo de chope.
Ignorei tudo e todos ali e fui direto falar com ela.
— Aposto que você não é daqui.
Ela pareceu não entender a pergunta, menos ainda a minha forma de
abordá-la. Aquilo para mim era normal. Eu não tinha nenhum tipo de pudor nem ficava
cheio de dedo quando o assunto era a aproximação de belas mulheres. Sempre fui
aquilo que chamam de “cara de pau”.
— Como é? — ela devolveu minha aposta com outra.
— Eu disse que aposto que você não é daqui, desse lugar. Você é de
fora, não é?
— Sim, sou. Como sabe?
— É que você é bonita.
Ela quedou-se entre confusa e risonha. Parecia não querer admitir que
achara engraçado o que eu disse.
— Não acha que tem mulher bonita aqui.
— Que eu tenha visto, até agora, não. Também não sou daqui.
Provavelmente há belas garotas por aqui, não tão belas quantos você, claro —
ela torceu o nariz —, mas devem estar escondidas em algum lugar.
Ela bufou. — Você costuma ser tão descarado e pouco original assim.
— Nem sempre, mas sabe como é. A ocasião faz o ladrão. Vi você aqui,
tão linda e sozinha e sozinha e não resisti.
— Devia ter resistido e me deixado em paz.
Ela dava uma de durona, eu já esperava por aquilo. A maioria se faz de
difícil para se valorizar. No que concordo plenamente; além do mais, é bem mais
divertida a conquista das que se fazem de duronas.
Uma hora e meia, e quatro chopes, depois e ela já havia contato toda
sua vida, em meio a gargalhadas e olhares maliciosos. Alguns beijos e bobagens
ditas ao pé do ouvido e aquela pose de intransponível já tinha ido pelos ares.
Ela se chamava Adriana, disse que era de São Paulo, e que estava em
Belém para uma reportagem; era uma jornalista. — É coisa quente — ela disse, enquanto
se despia, no seu quarto de hotel. Eu já estava sem camisa. Ela se sentou na
cama, eu fiquei de frente para ela; ela tirou meu cinto, e continuava falando
do que a trouxera para o Pará, — É uma matéria que será um furo de reportagem,
— ela desabotoou minha calça —, É uma matéria que vai ser vista no país todo, é
algo realmente... — ela baixou minha cueca — grande!
Ela queria continuar falando, mas não pôde. Sua boca estava ocupada no
momento.
Uma hora depois do ato sexual, e antes de pegar no sono, ainda bêbada,
ela deixou escapar que havia recebido uma dica de ouro sobre o paradeiro de uma
possível fonte, um homem que, se aceitasse dar uma entrevista para ela, poderia
revelar detalhes de um esquema de corrupção que desviara algumas dezenas,
talvez até centenas, de milhões de reais dos cofres públicos em licitações,
contratos fraudulentos, suborno e mais um monte de sujeira que envolvia o nome
de alguns figurões da política nacional, de vários partidos da base aliada do
governo, e até da oposição, e na qual o homem também estava envolvido, mas ele
era peixe pequeno, o que provavelmente não era bom para ele, pois se as coisas
fossem descobertas, como estavam sendo, ele acabaria sendo o único que fosse
parar atrás das grades, e esse era o maior argumento de Adriana para tentar
fazê-lo abrir o bico. Por isso estava no estado do Pará; era aqui que o homem
provavelmente estaria.
A última coisa que ela falou antes de apagar na cama foi o nome do
homem, que seria sua fonte e que detonaria o furo de reportagem do ano; o nome
dele era Dionísio.
Uma hora depois de Adriana apagar e estar imersa num sono pesado, eu
fui embora.
Dez horas da manhã o meu celular tocou. Era Antunes.
— Como está indo? — ele perguntou.
— Tudo conforme o planejado.
— Já localizou o seu target?
Target? Que merda.
— Vou cuidar disso agora — respondi.
— Muito bem, qualquer coisa, entre em contato, ok?
— Está bem.
— Good luck!
Ele desligou. Prometi para mim mesmo que não o atenderia novamente se
ele ligasse naquele mesmo dia.
Cinco minutos depois recebi uma mensagem; era de Adriana. Trocamos
telefone na noite anterior e ficamos de manter contato. Na mensagem ela
perguntava por que eu tinha saído sem falar dizer nada. Eu respondi que não
queria acordá-la, já que ela parecia tão mergulhada no sono. Ela disse qualquer
coisa como se duvidasse se o que eu respondi era sincero. Eu não disse nada.
Trinta segundos depois ela mandou outra mensagem dizendo que queria me ver mais
tarde. Eu respondi que sim, à noite poderíamos nos ver. Ela respondeu a
mensagem com um desses desenhos de rosto sorrindo, depois disse que gostou da
noite anterior, eu respondi que também havia gostado. Podemos repetir hoje, ela
sugeriu. Com certeza, eu respondi; ela respondeu com um desenho de rosto
fazendo biquinho, com um coração no canto, como a dizer que mandava um beijo
apaixonado. Eu respondi com o mesmo desenho.
Depois daquilo, de meia em meia hora ela ficava me mandando mensagens
com vídeos e memes, ora de sacanagem,
ora virais supostamente engraçados.
Não sei se ela ficaria tão animada assim à noite ao saber que sua
possível fonte não poderia dar o seu aguardado furo de reportagem, pois dali a
poucas horas, estaria morto.
Uma hora da tarde eu fui até um bar que ficava na rua Quinze de
Novembro. Pedi um sanduiche e um refrigerante. Aquilo seria o meu almoço. Fazia
mais de trinta graus e a claridade do sol que batia no chão e refletia nos
olhos quase cegava. O tempo abafado parecia não desanimar o povo que já chegava
para acompanhar a passagem dos blocos pela Avenida Portugal, seguindo pelo
Bulevar Castilhos França. Já havia um palco montado e algumas músicas já tocavam
em volume considerável. Era uma espécie de esquenta para o desfile que
começaria a partir das duas horas da tarde.
Tirei do bolso a foto de Dionísio. Era um tipo moreno, de baixa
estatura, não devia ter mais de um metro e sessenta de altura e bem magro,
rosto macilento. Parecia um morto de fome. Olhos fundos e cabelo castanho,
curto, assanhado. Era daquele tipo de gente besta que aceita qualquer merreca
para aceitar assinar qualquer documento sem se preocupar com a gravidade ou
importância do que está assinando. Tanto não se importava que estava ali,
pulando o carnaval, ao invés de procurar algum buraco, em algum fim de mundo,
para se entocar enquanto a poeira não baixasse.
O sanduiche estava ruim e o refrigerante não estava gelado. Paguei pelo
lanche e voltei para o quarto no qual havia me hospedado. Tomei um banho
gelado, era o segundo do dia, troquei de roupa, peguei a mochila que estava
jogada ao pé da cama e a pus sobre a pequena mesa de madeira mal situada no
meio do quarto. De dentro da mochila tirei a Glock 380, uma pistola automática,
e conferi a fantasia que deveria usar mais tarde no desfile. Dionisio
desfilaria num bloco de rua chamado Bruxas
do Congado, que tinha como característica o fato de todos os seus duzentos
integrantes que desfilavam usarem a mesma fantasia. Sandálias alpargatas,
calças e camisas de cetim, na cor azul piscina, na cintura uma saia feita com
tiras extraídas do bambu, no peito um colete de couro de bode, um capuz feito
com tecido rendado branco uma máscara feita de cabaça, com furos nos olhos,
nariz e boca. A maioria dos integrantes do bloco eram homens, mas algumas
mulheres também desfilavam. O efeito de todos vestidos igualmente era
interessante visto de longe. Eu estava com uma fantasia exatamente igual à
deles. O plano era o mais simples possível: infiltrar-me no bloco, enquanto
desfilavam, e eliminar Dionísio e me camuflar no meio dos demais.
Por volta das quatro da tarde eu deixei o quarto de hotel levando sobre
os ombros a mochila que continha a fantasia e a pistola. O bloco Bruxas do Congado desfilaria por volta
das cinco da tarde.
Passava das cinco da tarde, a praça do Relógio estava lotada de gente
feia, suada e contente, pulando, gritando e dançando ao som das músicas de
gosto duvidoso que a banda no palco executava. Aquela merda iria varar a noite
e a madrugada toda. A moleca corria desgovernada, esbarrando em todo mundo,
soltando bombinhas e pedindo dinheiro a uns e outros para comprar comida e mais
bombinhas. Alguns adultos guerreavam com as espadas de foguete, que jorravam um
jato de faíscas que, ao serem arremessadas no chão, rodopiavam desgovernadas e
numa velocidade incrível ocasionando, vez por outra, a queimadura de pernas,
mãos e olhos dos mais desavisados e desafortunados. Havia também muitas pessoas
fantasiadas com as roupas de blocos que já haviam desfilado e de blocos que
ainda esperavam sua vez de desfilar. Inclusive alguns integrantes do bloco Bruxas do Congado.
Ao microfone um dos idiotas que animavam os festejos anunciou que era
ora da passagem do bloco das Bruxas do
Congado.
Procurei uma rua transversal, onde o movimento de pessoas era menor, como
a Travessa Ocidental do Mercado, e tratei de me trocar. O cheiro de urina era
quase insuportável. Carnaval de rua tinha como uma de suas principais características
o fato das pessoas fazeres suas necessidades fisiológicas, e sexuais, nos
muros, árvores e paredes das casas de todo o entorno dos festejos.
Já trocado, inclusive com a pistola por baixo da fantasia, me desfiz da
mochila, jogando-a num canto perto de uma enorme lixeira; talvez voltasse para
busca-la, se tudo transcorresse sem maiores dificuldades, caso contrário, a
deixaria ali mesmo.
Voltei para a praça e tratei de encontrar meu target, como disse Antunes.
Quinze minutos depois eu o avistei.
Estava num bar, já fantasiado, mas sem a máscara. Tomava um copo de
cachaça. Era ainda mais baixo e magro do que na fotografia que tinha. Eu estava
há uns trinta metros de distância dele. Daquele ponto em diante não poderia
mais perdê-lo de vista.
Meu celular tocou, era Antunes. Não atendi. Reparei que havia mais
cinco ligações perdidas dele. Assim como também havia duas chamadas perdidas de
Adriana. Achei melhor desligar o celular. Era necessário dispensar toda a
atenção em meu alvo naquele momento.
Dionisio deu a última, e maior, talagada na aguardente, despediu-se dos
outros que estavam no bar e foi para a direção da praça, onde já começavam a se
aglomerar os outros integrantes do bloco Bruxas
do Congado que desfilariam. Ele foi cumprimentando todos que conhecia.
Também o acompanhei de perto. A banda começou a tocar um congado, música
característica do bloco. Os que ainda não haviam colocado suas máscaras
trataram de coloca-las. Dionísio também. Agora era a hora em que eu deveria ter
maior atenção, pois depois, caso o perdesse de vista, seria difícil acha-lo no
meio dos outros. Também pus a máscara e fui me aproximando dele.
Todos começaram a dançar; alguns carregavam chocalhos, outros levavam
pandeiros. O som era alto; a circulação de pessoas indo vindo era intenso. O
bloco se movimentava para frente; eu mantinha minha visão, sob a máscara,
concentrada em Dionísio.
Dez minutos depois eu sabia que o momento de agir se aproximava.
Fui me aproximando cada vez mais.
Num dado momento houve a forte explosão de um rojão; muitos se
assustaram e olharam na direção do barulho. Eu também; quando voltei meu olhar,
dois outros elementos esbarram em mim; quase caí. Ao me recompor, percebi que
havia perdido o cara de vista.
Merda! Gritei bem alto; ninguém me ouviu.
E agora para achar o cara?
Fui andando a esmo, tentando reconhecer a silhueta do Dionísio. Tentava
contar com a sorte, e com o fato dele ter um corpo franzino e pequeno, que o
descava facilmente dos demais. Ainda assim não seria nada fácil acha-lo.
Três minutos dando voltas entre os elementos do bloco, avistei um deles
cuja silhueta pareceu-me familiar; era ele. Eu o havia encontrado. E não podia
mais perder tempo.
Era a hora de agir.
Entre pulos, gritos, fogos, sons dissonantes, vai-e-vem de gente, fui me
aproximando mais e mais. Até ficar há menos de quatro metros dele.
Vagarosamente, saquei a pistola e fiquei com ela escondida sob a saia
feita com fibras de bambu. À minha frente, ele pulava e dançava despreocupado.
Há menos de dois metros, eu o olhava de cima a baixo, analisando qual a
melhor parte do corpo para ser atingida. Eu estava suando em bicas. Eram umas
seis horas da tarde e o sol ainda emanava seus raios a mais de trinta e cinco
graus de temperatura. Não logo a hora de tirar aquela máscara que me sufocava;
os outros pareciam não se preocupar com a temperatura ou a fantasia. Deviam já
estar acostumados.
Há um metro de distância eu apontei a arma para ele, dei mais um passo
e apertei o gatilho. Imediatamente me afastei, escondendo a arma. O corpo caiu,
e isso chamou a atenção dos que estavam ao redor. Alguns foram ao socorro do
folião caído.
Eu já estava me afastando, quando ouvi uma das pessoas que foi ver o
que havia acontecido com a pessoa caída gritar de susto e preocupação: — Ela
está sangrando.
A palavra “Ela” me fez parar. Eu havia atirado na pessoa errada, numa
mulher. Foi inevitável olhar para trás e voltar para ver querem era. Assim que
me aproximei e vi a mulher sem a máscara de cabaça, sangrando e agonizando, não
consegui conter minha surpresa. Era Adriana.
“O que diabos ela estava fazendo ali?” era a única coisa em que
conseguia pensar.
Fiquei atordoado, por um instante não ouvi nada, nenhum barulho, som ou
ruído. Era uma sensação muito estranha, e ruim.
Aos poucos fui me levantando, e quando levantei a cabeça, vi que as
pessoas paradas na minha frente, de repente, arregalaram os olhos, assustadas,
algumas viravam de costas e começaram a correr; haviam visto algo que as
aterrorizavam. Eu virei e me deparei com um dos fantasiados apontando uma pistola
ponto-quarenta para mim. Ele tirou a máscara e eu o reconheci. Era Dionísio.
Antes de ele apertar o gatilho, lembrei-me apenas das palavras de Antunes ao
dizer que tudo seria coisa simples e rápida, in-out.
Will