28 de junho de 2015

DESAFIO ESPINHODAGUA DE CONTOS - Contos Juninos - "OLHA A COBRA" autor Leona Volpe



— Vai ficar tudo bem — ele disse do avião e Ava podia ouvir o trepidar das asas na tempestade sobre o mar que ele atravessava, mesmo sob a música alta da festa junina que ela tinha sido obrigada a participar. Alguém a um canto narrava o caminho da roça e os casais pulavam, gritavam e dançavam conforme a tradição.
Seu coração se apertou. Oslo seu marido era um dos marinheiros navais mais prestigiados, ao ponto de que quando o governo Brasileiro tinha finalmente conseguido construir seu novo dispositivo psicológico, o simbionte, cuja função era fundir a psique de um soldado com um androide militar para pesquisa em águas profundas, Oslo tinha sido especialmente convocado para escoltá-lo até a Europa, para maiores estudos em Portugal.
Um trovão estourou onde ele estava e Ava saltou em seus pés, aterrorizada que algo pudesse atingir o avião naquele mau tempo.
— Você devia estar se divertindo — Oslo disse, muito calmamente para quem estava no olho da tempestade — pare de se preocupar, logo vou estar em terra firme, tomando vinho do porto.
Ela teve de rir, de nervosismo.
— Ok, vou aguardar que me retorne. — Estava prestes a desligar quando aquele som terrível atingiu seus ouvidos. Não era qualquer coisas como a tempestade, não era qualquer coisa que pudesse ter emergido da festa junina ao seu redor. Era como se um animal monstruosamente grande tivesse tentando se comunicar por qualquer razão — Oslo, está tudo bem?
Algo — ele pareceu pensar sobre o assunto — tem uma coisa enorme nadando logo abaixo de nós, é como um... — ele engasgou naquele segundo e ela pode ouvir o som do Simbionte sendo ativado — Ava, se alguma coisa acontecer, eu estou ligando o equipamento, assim a marinha vai poder localizá-lo...
— Oslo, o que raio está nadando abaixo de vocês? — Ela gritou e pode ouvir o som do animal mais forte e mais perto, a respiração de seu marido ficou mais forte. Pode ouvir o grito do piloto ao longe. Ele dizia histericamente “Vai nos engolir! O maldito dinossauro vai nos engolir!”.
O último som foi o inexplicável som ensurdecedoramente alto, e depois o som do avião se partindo. A ligação caiu e seus dedos afrouxaram, o celular escorregou por eles e caiu no chão também, se partindo. Uma caipirinha a olhou e gritou quando a viu cair em seus joelhos, virando os olhos antes de desmaiar.
As notícias depois disso se sucederam como um filme de Arquivo X. A assinatura psicológica de Oslo ainda estava ativa. O som captado pelo celular equivaleria a um animal 5 vezes maior que uma baleia azul. Quando o avião afundou os radares localizaram um Bloop de proporções alarmantes. O simbionte estava ativo quando foi engolido e todos os dados indicavam que provocou uma fusão entre Oslo e a criatura.
Em 4 meses todos os arquivos sobre o caso foram arquivados e ignorados pela Marinha e tudo o que sobrava da investigação cabia a um minúsculo órgão secretamente ligado a força marítima cuja única ocupação era encontrar o que restou do simbionte antes que piratas achassem suas partes e vendessem no mercado negro, levando para mãos maliciosas uma tecnologia que poderia ser usada para fins terríveis
Ava atravessou os mesmos corredores que Oslo costumava atravessar, deixando seus saltos baterem contra o piso lustroso. A sala de comando da Marinha era algo enorme e engenhoso, com seus computadores organizados por todas as paredes, mostrando cada perímetro da costa Brasileira. Era junho novamente e havia alguma decoração junina por ali.
— Hey — um dos técnicos a chamou e ela se aproximou. Sentou-se ao lado do técnico — eu não devia comentar isso — ele começou sussurrando — mas captamos outro Bloop vindo do Pacífico. Contornou o continente e parece estar vindo em nossa direção — ele girou em sua cadeira — está acontecendo Ava — ele moveu as mãos ao seu redor em pânico — É o apocalipse acontecendo. Logo durante as festas juninas — ele gemeu.
— É igual ao de Oslo? — Ela questionou e o técnico balançou a cabeça positivamente.
— Está vindo atacar a costa, devido a sua grande velocidade. O tamanho comparado aos outros que foram detectados o enquadraria como um Alpha da própria espécie, mas não está em bando. — Ele engasgou e se afastou quando ela se ergueu da cadeira, pegando seus documentos. Em menos de cinco minutos já estava em seu carro dirigindo para a costa, levando sua câmera.
Ainda na ponte ela podia ver a enorme costa escarpada do leviatã, a maneira como se aproximava levantando uma enorme onda de água. Desceu de seu carro quando chegou à enorme área que a Marinha secretamente mantinha, seus saltos ecoavam no silencio pesado e com um único movimento de crachá, os guardas abriram os portões para ela.
— O que está fazendo? — Gritou o técnico em seu comunicador e ela se aproximou do pavilhão X, sentindo seu próprio coração martelar em seu peito, quase como se fosse pular de sua garganta.
— Abra os portões.
— Não! O que está fazendo?!
Ela apertou o botão manual, inserindo sua digital. A porta rangeu ao ser aberta e por um pequeno momento achou que poderia morrer ali mesmo.
Os portões se abriram completamente e uma imensamente pesada pata caiu em terra, seguida de outra e de outras duas. Uma cabeça reptiliana se moveu a sua frente e imensos olhos amarelos a observaram. As narinas se dilataram sentindo seu aroma, a conhecendo.
Ava ligou o comunicador, enquanto se virava para correr em direção à praia, sentindo cada um dos seus músculos repuxarem em terror, enquanto o leviatã-Oslo rugia e corria em seu encalço, de encontro à outra fera aquática que emergia das águas escuras.
Em algum lugar, um narrador de festa junina gritava: “Olha a cobra!”.

— Estou levando meu próprio Alpha para o Apocalipse. 


26 de junho de 2015

DESAFIO ESPINHODAGUA DE CONTOS - Contos Juninos - "SÃO JOÃO VENDETA" autor Will





Eu estava me sentindo ridículo com aquela roupa.
Calça bege curta, vulgarmente chamada de “pula brejo”, com um dos bolsos tapado com um remendo colorido, sapato mocassim cinza, camisa xadrez e chapéu de palha. Pintei um dos dentes da frente de preto e também pintei algumas bolinhas pretas no rosto; era àquilo que esteticamente davam para achar parecido com a imagem de um “autentico” caipira. Depois de arrumado, me olhei no espelho e me perguntei se alguém que vivia na roça realmente se vestia daquela forma. Era óbvio que não.
Marisa estava animada. Ela sempre estava mais animada que eu para esse tipo de coisa. “Vai ser divertido” ela sempre dizia. Quase nunca era. Ainda mais aquele evento para o qual iríamos. O convite mandado por e-mail dizia que era tempo de “recordar, matar a saudade e reviver as emoções da memorável turma de 85”.
A maioria nem sabia ao certo quem havia organizado aquilo, apenas iam recebendo e repassando uns para os outros, mas todos pareceram gostar da ideia de juntar os alunos do colegial para uma festa junina, onde todos nós faríamos parte de uma grande dança da quadrilha.
Particularmente achei ridículo, mas a maioria achou criativo e se empolgou com a ideia de se encontrar pessoalmente, já que a maioria já se comunicava constantemente, mas apenas pelas redes sociais. E como voto vencido, tive que aderir e confirmar presença na festa junina, que seria realizada justamente no colégio onde estudamos.


Dia 29. Dia de São João.
Estávamos no carro da minha mulher. Voltando para um bairro de onde achei que não voltaria mais. Era um lugar pobre, que parecia mais pobre ainda. E a escola era o exemplo mais bem acabo do quanto as coisas haviam mudado nos últimos vinte anos. Todas as paredes pichadas, sujas e soltando o reboco. Móveis quebrados e vindo da rua, de algum lugar, o som dos tais funks proibidões e de música brega.
Quando minha mulher e eu entramos no pátio da escola avistamos o resto da turma. Havia mais ou menos umas quarenta pessoas. E me senti menos ridículo ao ver que muitos estavam ainda mais mal vestidos na tentativa de representar as figuras da roça.
O primeiro que nos abordou foi Pedro, vestido de padre. Ele foi um dos melhores amigos que tive, e que perdeu a aposta para Walter, outro amigo meu do colegial. Ambos apostaram o quanto duraria meu namoro com Marisa, que também fazia parte da nossa turma. Bom, contando namoro e noivado, lá se vão vinte anos de relação; bem mais que os dois meses que Pedro apostou que duraria.
Perguntei a Pedro porque justamente ele, o mais depravado da turma, estava vestido de padre. Ele disse que tinha recebido por e-mail a instrução específica do traje que deveria usar. Ele também disse que Rosa também havia recebido por e-mail a orientação de usar o vestido de noiva, o que me pareceu adequado já que ela era, disparado, a menina mais bonita do colégio naquela época.
Alberto também estava lá, e vestido de noivo. Aquilo pareceu um tanto lógico e, ao mesmo tempo, irônico. Alberto era o cara mais bem arrumado e perfumado de toda a turma, por conseguinte, também o mais metido da turma; ele era aquilo que hoje chamam de “boyzinho”, por isso vê-lo como noivo e a Rosa, a mais bonita, como noiva me causou uma sensação de estranheza e ironia.


Enquanto estávamos todos ali, ainda nos cumprimentando e jogando alguma conversa fora, a música começou a tocar. Era uma música do Luiz Gonzaga, “São João na Roça”, das muitas que tocavam sempre na festas de São João. Alguém gritou: “Vamos dançar a quadrilha” e quase imediatamente os casais foram se formando e começando a dançar, cada qual a seu modo, os paços de uma quadrilha mal-ajambrada.
Foi então que ele surgiu.
O Kinho. Foi difícil reconhecê-lo, mas sem dúvida Só quando o vi, foi que me apercebi que não sabia ao certo o nome do garoto que sempre fora gordo, muito gordo, e que por isso mesmo todos chamavam-no de porquinho. Com o tempo, houve a corruptela do apelido, passando para apenas Kinho.
Foi mais difícil ainda reconhece-lo pelo fato dele estar magro. Bem magro. Parecia até com um porte atlético.
Ele segurava uma espingarda.
A conclusão era óbvia. Ele estava ali representando o papel do pai da noiva na quadrilha, que devia ameaçar o noiva a obrigar-se a se casar com a noiva.
“Ei Kinho, tá magricela agora, é? E essa garrucha na sua mão? Ha, ha, ha”. Disse Alberto, rindo às gargalhadas, ao mesmo tempo em que agarrava Rosa pela cintura, que pareceu não gostar desse atitude. Todos ali riram. Menos o próprio Kinho.
E todos pararam de rir e mostraram terror em suas expressões ao ver Kinho apontando a espingarda para Alberto e atirando. Alberto caiu. Kinho começou a atirar a esmo.
Todos gritavam e corriam para todas as direções. Só aí foi possível perceber o olhar de Kinho; o quanto ele estava transtornado. O quanto esse olhar era igual ao que ele nos dirigia quando tirávamos sarro da cara dele, por ele ser gordo, tímido, um pouco gago e sem amigos. Só aí também foi impossível não concluir que fora ele quem havia mandado os convites e organizado aquela festa de São João. Aquela festa de sua vingança de todos os que dele não gostavam. E que ele os odiava.
Ele seguiu atirando. Muitos se jogavam no chão, outros corriam para as salas, para trás das paredes; procuravam um lugar para se proteger. A segunda que caiu baleada foi Rosa. Um tiro pelas costas na garota que sempre desprezara o garoto gordo que desde que se entendera por gente a desejava.
Kinho acertou mais dois. Entre eles Pedro, o que sempre se considerava o mais esperto, malandro e melhor que os outros. Um mesquinho depravado que nada melhor fazia da vida do que gastar a merreca que ganhava consertando carros enchendo a cara e bordejar em prostíbulos nos fins-de-semana. E justamente este morreu de joelhos, implorando pela misericórdia da vida inútil.
Olhei para o lado e Marisa não estava lá; tinha corrido para algum canto, para se proteger, como os demais estavam fazendo. Eu paralisei; não conseguia me mover. O medo me deixara sem ação.
Kinho olhou diretamente para mim. Eu arregalei os olhos de pavor. Ele apontou a espingarda para mim; eu não disse nada. Não consegui. Ele não atirou. Ao invés disso, ele voltou o cano para a própria boca e apertou o gatilho. Se matou; a meus pés.
As pessoas continuavam gritando e correndo. Quase não dava para ouvir tocando no aparelho de som a voz de Luiz Gonzaga cantando:
“Eu quero vê, quero ver a paia voar!”.

25 de junho de 2015

DESAFIO ESPINHO D'ÁGUA DE CONTOS - Contos Juninos - É NOS PEQUENOS FRASCOS QUE ESTÃO AS GRANDES ESSÊNCIAS - Kiko Zampieri





O ano era 1968. Junho era o mês. O local, Grupo Escolar Dr. Reinaldo Ribeiro da Silva. O motivo, festa junina. O alvo, Rosinha.
Lá estava eu, entrando pelo portão com a minha calça remendada, a camisa xadrez e o chapéu de palha na cabeça, rosto pintado com a rolha queimada, bigode e cavanhaque. Conferi os trocados no bolso. Tudo esquematizado. Um quentão, um saco de pipoca, uma jogada nas argolas, outra bola nas latas e o principal, um correio elegante. Estava tudo dentro dos conformes.
O pátio da escola estava todo enfeitado com bandeirinhas de várias cores, coisa da Dona Beatriz, a diretora, ela adorava as festas comemorativas, dizia que era importante que as datas fossem comemoradas e jamais esquecidas. Assim era nas festas do Dia do Índio, Independência do Brasil, dia da Bandeira, do Descobrimento e por aí a fora, particularmente eu gostava das Festas Juninas.
Era o meu último ano no Grupo Escolar, agora eu iria para o ginásio, em outro colégio, me sentia um homem feito, olhando com desdém para os pequeninos que iniciavam a sua vida pedagógica.
Fui caminhando pelo pequeno corredor externo, por onde eu alcançaria a quadra de esportes, ali era o combinado de nos encontrarmos, eu, Julinho, Dema, Lajes e o Toni. De longe avistei o Toni, como sempre comendo, dessa vez um milho cozido, o Lajes, arrumando o cabelo emplastado de brilhantina, o Julinho imitando um jogador que acabava de fazer um gol importante e o Dema, como sempre quieto e atento ao movimento.
Notei que só eu estava com o rosto pintado e o chapéu de palha, não era o combinado e assim me senti deslocado e mais feio que os outros, pensei em limpar o rosto e guardar o chapéu, mas resolvi manter, afinal era uma festa junina.
Ficamos ali conversando sobre o novo seriado que estava começando na TV, Terra de Gigantes, depois sobre o filme Planeta dos Macacos que fomos assistir no Cine Nacional, na Lapa. Resolvemos passear pelas barracas e ver as meninas que se preparavam para dançarem no pequeno palco do pátio. A primeira que meus olhos viram foi a deusa da festa, Rosinha, linda como sempre, cabelos louros, olhos verdes e uma boca que fazia inveja a muitas mulheres maduras na festa. Meu coração parecia querer sair pela boca, um nó no estômago e uma leve tremedeira nas pernas. Ao som de Cai-Cai Balão, fui me aproximando disfarçadamente, passo a passo, olhar de esgueio, disfarce, uma leve trombada com um casal, pedido de desculpas, de repente cadê Rosinha. Procurei desesperado como um caçador em busca de sua presa, por entre cinturas masculinas e femininas, tripé de barracas, bexigas murchas e nada, nada mesmo, ela havia evaporado. Maldição, descomunguei baixinho. Procurei os amigos, encontrei todos, menos o Toni. Não queria chamar a atenção dos amigos para o meu desejo por Rosinha, com certeza seria motivo de chacotas o resto do ano. Fomos para as barracas de jogos.
Cada argola lançada um olhar em busca de Rosinha, cada bola de meia atirada nas latas, outro olhar e nada. Outro olhar e a bola de meia quase acertou a professora Lili. Era Rosinha saindo de trás da parede do pátio acompanhada pelo meu algoz Toni, naquele instante quis me transformar no Charlton Heston do filme e matar aquele macaco insolente e atrevido, me contive, não podia demonstrar o ciúme em frente aos meus parceiros. O coração parecia derreter de raiva e de frustração, claro que nem sabia o que era frustração, mas senti algo estranho, não queria mais olhar para ela. Passei o resto da festa jururu, debruçado na madeira da barraca de argolas e com o olhar mortal sobre aqueles dois. Só acordei quando a menina do correio elegante me entregou um coração de cartolina e nele escrito “Você é o menino mais lindo da festa”. Nossa! Quase pirei, vasculhei o local com os meus olhos de lince a procura de alguém que estivesse me olhando ou disfarçando. Nada. Chamei a menina e perguntei de quem era e claro ela respondeu que não podia dizer. Sugestionou que eu respondesse e marcasse algum encontro. Perfeito! Fenomenal! Supimpa! Enviei e marquei o encontro com a remetente em frente da barraca de quentão. Fui para lá ansioso, afinal nada como um novo amor para substituir o perdido. Acho que era isso que pensei naquele momento. Corri para lá antes mesmo que a menina saísse com o bilhetinho.
Algum tempo depois, já sem muita esperança, já acreditando que tudo não passara de uma brincadeira de um dos meus amigos, comecei a sair de perto da barraca. Chegava a uma conclusão que eu era mesmo um babaca e que tinha muito que aprender ainda. Antes de sair uma mão segurou a minha, levemente, era Conceição, a baixinha do quarto A, gordinha, usando o cabelo com duas tranças presas por fitas amarelas, aquela que ninguém quer ficar no recreio ou passar muito tempo ao seu lado e ficar ouvindo, “Tá namorando! Tá namorando!” e muitas risadas. Na hora pensei em sair de perto o mais rápido possível antes que alguém nos visse ali juntos, porém na minha cabeça veio as palavras de minha mãe, nunca menospreze uma pessoa se não quer ser menosprezado também. Ela sempre tinha razão e talvez eu não era o galã que via no espelho quando me penteava. Deixei minha mão na dela. Ela então me puxou para passearmos pelo gramado entre o prédio das salas de aula e o pátio. Pude ver meus amigos ao fundo, rindo e curvando o corpo em deboche, dane-se pensei e continuei a caminhar.
As palavras dela eram doces e bem articuladas, relembrava o gol que eu fizera no recreio, da poesia que eu tinha feito para o Dia das Mães e lera no palco do pátio e da medalha que tinha recebido por ter passado de ano com louvor. Estava extasiado e ao mesmo tempo boquiaberto com as lembranças dela sobre mim, eu até esqueci a Rosinha. Chegamos até o portão de saída, o pai a esperava, então num gesto rápido, beijou meus lábios e pude até sentir o molhado de sua saliva, meu corpo estremeceu, afinal era o meu primeiro beijo, fiquei ali olhando ela correr pelo portão e se virar e acenar para mim, correspondi e foi a última vez que a vi. Depois das férias ela não voltou para a escola, soube que tinha se mudado para o interior.
O ano era 1988. Junho era o mês. O local, Grupo Escolar Dr. Reinaldo Ribeiro da Silva. O motivo, festa junina. O alvo, Pedrinho, meu filho, que iria dançar no velho palco do pátio.
Foi como se eu voltasse ao tempo e me tornasse aquele menino que corria pelo gramado, subia as escadas e sentava na primeira fila. O colégio estava mudado, reformado e ampliado, mas muitas coisas ainda se mantinham, como a parede do prédio, com ladrilhos imitando o fundo do mar e os peixinhos nadando alegremente.
Havia casado e me separado e agora fazia o papel do “paizão” levando o filho para dançar numa festa junina. Lembrei da última festa que havia participado, afinal aquela que me havia trocado pelo meu amigo naquela festa, sucumbira aos meus encantos e se tornara minha esposa. Rosinha. Porém o casamento não dera certo, por incompatibilidade de gênios, é até engraçado como a maioria dos casais se separam por causa disso, bem até que não foi de todo ruim, ele me proporcionou um filho e nada melhor para um homem que ser pai. Aumenta as responsabilidades e parece que sua vida agora é somente para guiá-lo pelo mundo.
Ele correu para os braços da professora que o ajudava a subir as escadas do palco e o alinhava junto aos amigos. Dali eu podia vê-lo e ele a mim. Entre os olhares eu notava as crianças correndo, jogando argolas e as bolas de meia nas latas, a menina com a cestinha do correio elegante e uma mão que segurava a minha. Tomei um susto e virei-me. Vocês nunca irão imaginar o tamanho da vibração do meu coração e o inacreditável olhar de pasmo sobre aquela morena de olhos oblíquos, como de Capitu e o olhar de ressaca, que até hoje nem sei o porquê se chama ressaca, um corpo escultural e um sorriso cativante. Quase não senti o calor dos lábios dela nos meus, dessa vez mais longo e com uma coadjuvante, a sua língua macia e úmida.
— Oi Kiko! Sou a Conceição.
 Ao fundo o som de Cai-Cai Balão e um menino a procura do pai.