O ano
era 1968. Junho era o mês. O local, Grupo Escolar Dr. Reinaldo Ribeiro da
Silva. O motivo, festa junina. O alvo, Rosinha.
Lá
estava eu, entrando pelo portão com a minha calça remendada, a camisa xadrez e
o chapéu de palha na cabeça, rosto pintado com a rolha queimada, bigode e
cavanhaque. Conferi os trocados no bolso. Tudo esquematizado. Um quentão, um
saco de pipoca, uma jogada nas argolas, outra bola nas latas e o principal, um
correio elegante. Estava tudo dentro dos conformes.
O pátio
da escola estava todo enfeitado com bandeirinhas de várias cores, coisa da Dona
Beatriz, a diretora, ela adorava as festas comemorativas, dizia que era
importante que as datas fossem comemoradas e jamais esquecidas. Assim era nas
festas do Dia do Índio, Independência do Brasil, dia da Bandeira, do
Descobrimento e por aí a fora, particularmente eu gostava das Festas Juninas.
Era o
meu último ano no Grupo Escolar, agora eu iria para o ginásio, em outro
colégio, me sentia um homem feito, olhando com desdém para os pequeninos que
iniciavam a sua vida pedagógica.
Fui
caminhando pelo pequeno corredor externo, por onde eu alcançaria a quadra de
esportes, ali era o combinado de nos encontrarmos, eu, Julinho, Dema, Lajes e o
Toni. De longe avistei o Toni, como sempre comendo, dessa vez um milho cozido,
o Lajes, arrumando o cabelo emplastado de brilhantina, o Julinho imitando um
jogador que acabava de fazer um gol importante e o Dema, como sempre quieto e
atento ao movimento.
Notei
que só eu estava com o rosto pintado e o chapéu de palha, não era o combinado e
assim me senti deslocado e mais feio que os outros, pensei em limpar o rosto e
guardar o chapéu, mas resolvi manter, afinal era uma festa junina.
Ficamos
ali conversando sobre o novo seriado que estava começando na TV, Terra de
Gigantes, depois sobre o filme Planeta dos Macacos que fomos assistir no Cine
Nacional, na Lapa. Resolvemos passear pelas barracas e ver as meninas que se
preparavam para dançarem no pequeno palco do pátio. A primeira que meus olhos
viram foi a deusa da festa, Rosinha, linda como sempre, cabelos louros, olhos
verdes e uma boca que fazia inveja a muitas mulheres maduras na festa. Meu
coração parecia querer sair pela boca, um nó no estômago e uma leve tremedeira
nas pernas. Ao som de Cai-Cai Balão, fui me aproximando disfarçadamente, passo
a passo, olhar de esgueio, disfarce, uma leve trombada com um casal, pedido de
desculpas, de repente cadê Rosinha. Procurei desesperado como um caçador em
busca de sua presa, por entre cinturas masculinas e femininas, tripé de
barracas, bexigas murchas e nada, nada mesmo, ela havia evaporado. Maldição, descomunguei baixinho. Procurei os amigos, encontrei todos, menos o Toni. Não
queria chamar a atenção dos amigos para o meu desejo por Rosinha, com certeza
seria motivo de chacotas o resto do ano. Fomos para as barracas de jogos.
Cada
argola lançada um olhar em busca de Rosinha, cada bola de meia atirada nas
latas, outro olhar e nada. Outro olhar e a bola de meia quase acertou a
professora Lili. Era Rosinha saindo de trás da parede do pátio acompanhada pelo
meu algoz Toni, naquele instante quis me transformar no Charlton Heston do
filme e matar aquele macaco insolente e atrevido, me contive, não podia
demonstrar o ciúme em frente aos meus parceiros. O coração parecia derreter de
raiva e de frustração, claro que nem sabia o que era frustração, mas senti algo
estranho, não queria mais olhar para ela. Passei o resto da festa jururu,
debruçado na madeira da barraca de argolas e com o olhar mortal sobre aqueles
dois. Só acordei quando a menina do correio elegante me entregou um coração de
cartolina e nele escrito “Você é o menino mais lindo da festa”. Nossa! Quase
pirei, vasculhei o local com os meus olhos de lince a procura de alguém que
estivesse me olhando ou disfarçando. Nada. Chamei a menina e perguntei de quem
era e claro ela respondeu que não podia dizer. Sugestionou que eu respondesse e
marcasse algum encontro. Perfeito! Fenomenal! Supimpa! Enviei e marquei o
encontro com a remetente em frente da barraca de quentão. Fui para lá ansioso,
afinal nada como um novo amor para substituir o perdido. Acho que era isso que
pensei naquele momento. Corri para lá antes mesmo que a menina saísse com o
bilhetinho.
Algum
tempo depois, já sem muita esperança, já acreditando que tudo não passara de
uma brincadeira de um dos meus amigos, comecei a sair de perto da barraca.
Chegava a uma conclusão que eu era mesmo um babaca e que tinha muito que
aprender ainda. Antes de sair uma mão segurou a minha, levemente, era
Conceição, a baixinha do quarto A, gordinha, usando o cabelo com duas tranças
presas por fitas amarelas, aquela que ninguém quer ficar no recreio ou passar
muito tempo ao seu lado e ficar ouvindo, “Tá namorando! Tá namorando!” e muitas
risadas. Na hora pensei em sair de perto o mais rápido possível antes que
alguém nos visse ali juntos, porém na minha cabeça veio as palavras de minha
mãe, nunca menospreze uma pessoa se não quer ser menosprezado também. Ela
sempre tinha razão e talvez eu não era o galã que via no espelho quando me
penteava. Deixei minha mão na dela. Ela então me puxou para passearmos pelo
gramado entre o prédio das salas de aula e o pátio. Pude ver meus amigos ao
fundo, rindo e curvando o corpo em deboche, dane-se pensei e continuei a
caminhar.
As
palavras dela eram doces e bem articuladas, relembrava o gol que eu fizera no
recreio, da poesia que eu tinha feito para o Dia das Mães e lera no palco do
pátio e da medalha que tinha recebido por ter passado de ano com louvor. Estava
extasiado e ao mesmo tempo boquiaberto com as lembranças dela sobre mim, eu até
esqueci a Rosinha. Chegamos até o portão de saída, o pai a esperava, então num
gesto rápido, beijou meus lábios e pude até sentir o molhado de sua saliva, meu
corpo estremeceu, afinal era o meu primeiro beijo, fiquei ali olhando ela
correr pelo portão e se virar e acenar para mim, correspondi e foi a última vez
que a vi. Depois das férias ela não voltou para a escola, soube que tinha se
mudado para o interior.
O ano era
1988. Junho era o mês. O local, Grupo Escolar Dr. Reinaldo Ribeiro da Silva. O
motivo, festa junina. O alvo, Pedrinho, meu filho, que iria dançar no velho
palco do pátio.
Foi
como se eu voltasse ao tempo e me tornasse aquele menino que corria pelo gramado,
subia as escadas e sentava na primeira fila. O colégio estava mudado, reformado
e ampliado, mas muitas coisas ainda se mantinham, como a parede do prédio, com
ladrilhos imitando o fundo do mar e os peixinhos nadando alegremente.
Havia
casado e me separado e agora fazia o papel do “paizão” levando o filho para
dançar numa festa junina. Lembrei da última festa que havia participado, afinal
aquela que me havia trocado pelo meu amigo naquela festa, sucumbira aos meus
encantos e se tornara minha esposa. Rosinha. Porém o casamento não dera certo,
por incompatibilidade de gênios, é até engraçado como a maioria dos casais se
separam por causa disso, bem até que não foi de todo ruim, ele me proporcionou
um filho e nada melhor para um homem que ser pai. Aumenta as responsabilidades
e parece que sua vida agora é somente para guiá-lo pelo mundo.
Ele
correu para os braços da professora que o ajudava a subir as escadas do palco e
o alinhava junto aos amigos. Dali eu podia vê-lo e ele a mim. Entre os olhares
eu notava as crianças correndo, jogando argolas e as bolas de meia nas latas, a
menina com a cestinha do correio elegante e uma mão que segurava a minha. Tomei
um susto e virei-me. Vocês nunca irão imaginar o tamanho da vibração do meu
coração e o inacreditável olhar de pasmo sobre aquela morena de olhos oblíquos,
como de Capitu e o olhar de ressaca, que até hoje nem sei o porquê se chama
ressaca, um corpo escultural e um sorriso cativante. Quase não senti o calor
dos lábios dela nos meus, dessa vez mais longo e com uma coadjuvante, a sua
língua macia e úmida.
— Oi
Kiko! Sou a Conceição.
Ao fundo o som de Cai-Cai Balão e um menino a
procura do pai.
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