26 de junho de 2015

DESAFIO ESPINHODAGUA DE CONTOS - Contos Juninos - "SÃO JOÃO VENDETA" autor Will





Eu estava me sentindo ridículo com aquela roupa.
Calça bege curta, vulgarmente chamada de “pula brejo”, com um dos bolsos tapado com um remendo colorido, sapato mocassim cinza, camisa xadrez e chapéu de palha. Pintei um dos dentes da frente de preto e também pintei algumas bolinhas pretas no rosto; era àquilo que esteticamente davam para achar parecido com a imagem de um “autentico” caipira. Depois de arrumado, me olhei no espelho e me perguntei se alguém que vivia na roça realmente se vestia daquela forma. Era óbvio que não.
Marisa estava animada. Ela sempre estava mais animada que eu para esse tipo de coisa. “Vai ser divertido” ela sempre dizia. Quase nunca era. Ainda mais aquele evento para o qual iríamos. O convite mandado por e-mail dizia que era tempo de “recordar, matar a saudade e reviver as emoções da memorável turma de 85”.
A maioria nem sabia ao certo quem havia organizado aquilo, apenas iam recebendo e repassando uns para os outros, mas todos pareceram gostar da ideia de juntar os alunos do colegial para uma festa junina, onde todos nós faríamos parte de uma grande dança da quadrilha.
Particularmente achei ridículo, mas a maioria achou criativo e se empolgou com a ideia de se encontrar pessoalmente, já que a maioria já se comunicava constantemente, mas apenas pelas redes sociais. E como voto vencido, tive que aderir e confirmar presença na festa junina, que seria realizada justamente no colégio onde estudamos.


Dia 29. Dia de São João.
Estávamos no carro da minha mulher. Voltando para um bairro de onde achei que não voltaria mais. Era um lugar pobre, que parecia mais pobre ainda. E a escola era o exemplo mais bem acabo do quanto as coisas haviam mudado nos últimos vinte anos. Todas as paredes pichadas, sujas e soltando o reboco. Móveis quebrados e vindo da rua, de algum lugar, o som dos tais funks proibidões e de música brega.
Quando minha mulher e eu entramos no pátio da escola avistamos o resto da turma. Havia mais ou menos umas quarenta pessoas. E me senti menos ridículo ao ver que muitos estavam ainda mais mal vestidos na tentativa de representar as figuras da roça.
O primeiro que nos abordou foi Pedro, vestido de padre. Ele foi um dos melhores amigos que tive, e que perdeu a aposta para Walter, outro amigo meu do colegial. Ambos apostaram o quanto duraria meu namoro com Marisa, que também fazia parte da nossa turma. Bom, contando namoro e noivado, lá se vão vinte anos de relação; bem mais que os dois meses que Pedro apostou que duraria.
Perguntei a Pedro porque justamente ele, o mais depravado da turma, estava vestido de padre. Ele disse que tinha recebido por e-mail a instrução específica do traje que deveria usar. Ele também disse que Rosa também havia recebido por e-mail a orientação de usar o vestido de noiva, o que me pareceu adequado já que ela era, disparado, a menina mais bonita do colégio naquela época.
Alberto também estava lá, e vestido de noivo. Aquilo pareceu um tanto lógico e, ao mesmo tempo, irônico. Alberto era o cara mais bem arrumado e perfumado de toda a turma, por conseguinte, também o mais metido da turma; ele era aquilo que hoje chamam de “boyzinho”, por isso vê-lo como noivo e a Rosa, a mais bonita, como noiva me causou uma sensação de estranheza e ironia.


Enquanto estávamos todos ali, ainda nos cumprimentando e jogando alguma conversa fora, a música começou a tocar. Era uma música do Luiz Gonzaga, “São João na Roça”, das muitas que tocavam sempre na festas de São João. Alguém gritou: “Vamos dançar a quadrilha” e quase imediatamente os casais foram se formando e começando a dançar, cada qual a seu modo, os paços de uma quadrilha mal-ajambrada.
Foi então que ele surgiu.
O Kinho. Foi difícil reconhecê-lo, mas sem dúvida Só quando o vi, foi que me apercebi que não sabia ao certo o nome do garoto que sempre fora gordo, muito gordo, e que por isso mesmo todos chamavam-no de porquinho. Com o tempo, houve a corruptela do apelido, passando para apenas Kinho.
Foi mais difícil ainda reconhece-lo pelo fato dele estar magro. Bem magro. Parecia até com um porte atlético.
Ele segurava uma espingarda.
A conclusão era óbvia. Ele estava ali representando o papel do pai da noiva na quadrilha, que devia ameaçar o noiva a obrigar-se a se casar com a noiva.
“Ei Kinho, tá magricela agora, é? E essa garrucha na sua mão? Ha, ha, ha”. Disse Alberto, rindo às gargalhadas, ao mesmo tempo em que agarrava Rosa pela cintura, que pareceu não gostar desse atitude. Todos ali riram. Menos o próprio Kinho.
E todos pararam de rir e mostraram terror em suas expressões ao ver Kinho apontando a espingarda para Alberto e atirando. Alberto caiu. Kinho começou a atirar a esmo.
Todos gritavam e corriam para todas as direções. Só aí foi possível perceber o olhar de Kinho; o quanto ele estava transtornado. O quanto esse olhar era igual ao que ele nos dirigia quando tirávamos sarro da cara dele, por ele ser gordo, tímido, um pouco gago e sem amigos. Só aí também foi impossível não concluir que fora ele quem havia mandado os convites e organizado aquela festa de São João. Aquela festa de sua vingança de todos os que dele não gostavam. E que ele os odiava.
Ele seguiu atirando. Muitos se jogavam no chão, outros corriam para as salas, para trás das paredes; procuravam um lugar para se proteger. A segunda que caiu baleada foi Rosa. Um tiro pelas costas na garota que sempre desprezara o garoto gordo que desde que se entendera por gente a desejava.
Kinho acertou mais dois. Entre eles Pedro, o que sempre se considerava o mais esperto, malandro e melhor que os outros. Um mesquinho depravado que nada melhor fazia da vida do que gastar a merreca que ganhava consertando carros enchendo a cara e bordejar em prostíbulos nos fins-de-semana. E justamente este morreu de joelhos, implorando pela misericórdia da vida inútil.
Olhei para o lado e Marisa não estava lá; tinha corrido para algum canto, para se proteger, como os demais estavam fazendo. Eu paralisei; não conseguia me mover. O medo me deixara sem ação.
Kinho olhou diretamente para mim. Eu arregalei os olhos de pavor. Ele apontou a espingarda para mim; eu não disse nada. Não consegui. Ele não atirou. Ao invés disso, ele voltou o cano para a própria boca e apertou o gatilho. Se matou; a meus pés.
As pessoas continuavam gritando e correndo. Quase não dava para ouvir tocando no aparelho de som a voz de Luiz Gonzaga cantando:
“Eu quero vê, quero ver a paia voar!”.

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