Eu estava me sentindo ridículo com
aquela roupa.
Calça bege curta, vulgarmente chamada de
“pula brejo”, com um dos bolsos tapado com um remendo colorido, sapato mocassim
cinza, camisa xadrez e chapéu de palha. Pintei um dos dentes da frente de preto
e também pintei algumas bolinhas pretas no rosto; era àquilo que esteticamente davam
para achar parecido com a imagem de um “autentico” caipira. Depois de arrumado,
me olhei no espelho e me perguntei se alguém que vivia na roça realmente se
vestia daquela forma. Era óbvio que não.
Marisa estava animada. Ela sempre estava
mais animada que eu para esse tipo de coisa. “Vai ser divertido” ela sempre
dizia. Quase nunca era. Ainda mais aquele evento para o qual iríamos. O convite
mandado por e-mail dizia que era tempo de “recordar, matar a saudade e reviver
as emoções da memorável turma de 85”.
A maioria nem sabia ao certo quem havia
organizado aquilo, apenas iam recebendo e repassando uns para os outros, mas
todos pareceram gostar da ideia de juntar os alunos do colegial para uma festa
junina, onde todos nós faríamos parte de uma grande dança da quadrilha.
Particularmente achei ridículo, mas a
maioria achou criativo e se empolgou com a ideia de se encontrar pessoalmente,
já que a maioria já se comunicava constantemente, mas apenas pelas redes
sociais. E como voto vencido, tive que aderir e confirmar presença na festa
junina, que seria realizada justamente no colégio onde estudamos.
Dia 29. Dia de São João.
Estávamos no carro da minha mulher.
Voltando para um bairro de onde achei que não voltaria mais. Era um lugar
pobre, que parecia mais pobre ainda. E a escola era o exemplo mais bem acabo do
quanto as coisas haviam mudado nos últimos vinte anos. Todas as paredes
pichadas, sujas e soltando o reboco. Móveis quebrados e vindo da rua, de algum
lugar, o som dos tais funks proibidões e de música brega.
Quando minha mulher e eu entramos no
pátio da escola avistamos o resto da turma. Havia mais ou menos umas quarenta
pessoas. E me senti menos ridículo ao ver que muitos estavam ainda mais mal
vestidos na tentativa de representar as figuras da roça.
O primeiro que nos abordou foi Pedro,
vestido de padre. Ele foi um dos melhores amigos que tive, e que perdeu a
aposta para Walter, outro amigo meu do colegial. Ambos apostaram o quanto
duraria meu namoro com Marisa, que também fazia parte da nossa turma. Bom,
contando namoro e noivado, lá se vão vinte anos de relação; bem mais que os
dois meses que Pedro apostou que duraria.
Perguntei a Pedro porque justamente ele,
o mais depravado da turma, estava vestido de padre. Ele disse que tinha
recebido por e-mail a instrução específica do traje que deveria usar. Ele
também disse que Rosa também havia recebido por e-mail a orientação de usar o
vestido de noiva, o que me pareceu adequado já que ela era, disparado, a menina
mais bonita do colégio naquela época.
Alberto também estava lá, e vestido de
noivo. Aquilo pareceu um tanto lógico e, ao mesmo tempo, irônico. Alberto era o
cara mais bem arrumado e perfumado de toda a turma, por conseguinte, também o mais
metido da turma; ele era aquilo que hoje chamam de “boyzinho”, por isso vê-lo
como noivo e a Rosa, a mais bonita, como noiva me causou uma sensação de
estranheza e ironia.
Enquanto estávamos todos ali, ainda nos
cumprimentando e jogando alguma conversa fora, a música começou a tocar. Era
uma música do Luiz Gonzaga, “São João na Roça”, das muitas que tocavam sempre
na festas de São João. Alguém gritou: “Vamos dançar a quadrilha” e quase
imediatamente os casais foram se formando e começando a dançar, cada qual a seu
modo, os paços de uma quadrilha mal-ajambrada.
Foi então que ele surgiu.
O Kinho. Foi difícil reconhecê-lo, mas
sem dúvida Só quando o vi, foi que me apercebi que não sabia ao certo o nome do
garoto que sempre fora gordo, muito gordo, e que por isso mesmo todos
chamavam-no de porquinho. Com o tempo, houve a corruptela do apelido, passando
para apenas Kinho.
Foi mais difícil ainda reconhece-lo pelo
fato dele estar magro. Bem magro. Parecia até com um porte atlético.
Ele segurava uma espingarda.
A conclusão era óbvia. Ele estava ali
representando o papel do pai da noiva na quadrilha, que devia ameaçar o noiva a
obrigar-se a se casar com a noiva.
“Ei Kinho, tá magricela agora, é? E essa
garrucha na sua mão? Ha, ha, ha”. Disse Alberto, rindo às gargalhadas, ao mesmo
tempo em que agarrava Rosa pela cintura, que pareceu não gostar desse atitude.
Todos ali riram. Menos o próprio Kinho.
E todos pararam de rir e mostraram
terror em suas expressões ao ver Kinho apontando a espingarda para Alberto e
atirando. Alberto caiu. Kinho começou a atirar a esmo.
Todos gritavam e corriam para todas as
direções. Só aí foi possível perceber o olhar de Kinho; o quanto ele estava
transtornado. O quanto esse olhar era igual ao que ele nos dirigia quando
tirávamos sarro da cara dele, por ele ser gordo, tímido, um pouco gago e sem
amigos. Só aí também foi impossível não concluir que fora ele quem havia mandado
os convites e organizado aquela festa de São João. Aquela festa de sua vingança
de todos os que dele não gostavam. E que ele os odiava.
Ele seguiu atirando. Muitos se jogavam
no chão, outros corriam para as salas, para trás das paredes; procuravam um lugar
para se proteger. A segunda que caiu baleada foi Rosa. Um tiro pelas costas na
garota que sempre desprezara o garoto gordo que desde que se entendera por
gente a desejava.
Kinho acertou mais dois. Entre eles Pedro,
o que sempre se considerava o mais esperto, malandro e melhor que os outros. Um
mesquinho depravado que nada melhor fazia da vida do que gastar a merreca que
ganhava consertando carros enchendo a cara e bordejar em prostíbulos nos
fins-de-semana. E justamente este morreu de joelhos, implorando pela
misericórdia da vida inútil.
Olhei para o lado e Marisa não estava
lá; tinha corrido para algum canto, para se proteger, como os demais estavam
fazendo. Eu paralisei; não conseguia me mover. O medo me deixara sem ação.
Kinho olhou diretamente para mim. Eu
arregalei os olhos de pavor. Ele apontou a espingarda para mim; eu não disse
nada. Não consegui. Ele não atirou. Ao invés disso, ele voltou o cano para a
própria boca e apertou o gatilho. Se matou; a meus pés.
As pessoas continuavam gritando e correndo.
Quase não dava para ouvir tocando no aparelho de som a voz de Luiz Gonzaga
cantando:
“Eu quero vê, quero ver a paia voar!”.
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