14 de agosto de 2015

GOLDFIELD - UMA CIDADE FANTASMA





Goldfield era uma cidade antiga do estado de Nevada, nascida na época da corrida do ouro em 1902. Quase uma cidade fantasma, com edifícios destruídos pelo grande incêndio em 1923, dos quais apenas dois prédios ficaram intactos. O Grande Hotel e a escola. Atualmente sobrevivia do pouco turismo daqueles que adoravam as histórias do Velho Oeste, minas de ouro abandonadas, pedaços de igrejas e muitas terras desertas.
O que um detetive de Bellevue Hill estava fazendo naquele fim de mundo? Não era para nenhuma filmagem, com certeza. Eu havia recebido um pedido de um velho amigo do meu pai, milionário e produtor de cinema, para localizar sua filha mais velha. Ela havia desaparecido depois que saíra de uma festa na Universidade. Tudo levava a crer que ela ficara bêbada e dormira na casa de alguma amiga ou em estava em algum quarto de motel com algum jogador de futebol, contudo o caso se tornou mais sério depois do segundo dia. A polícia e o FBI foram comunicados e imediatamente entraram em ação. Como de costume a morosidade das autoridades o fizeram chegar até mim. Perito em encontrar pessoas desaparecidas, maridos e esposas infiéis e mulheres em busca de alguma aventura. O problema que a minha área de atuação era bem requintada e cheia de facilidades para locomoção. Aqui era o inferno de Dante. Calor, mosquitos, cerveja quente e muito abandono. Pelos meus estudos, ali havia sido o centro aurífero de Nevada, agora totalmente decadente.
Os habitantes tentavam ser cordiais e atenciosos, mas era impossível mudar as características de um povo acostumado a aspereza daquela região, além de estarem miscigenados com os nativos e latinos.
Esse era o terceiro dia em Goldfield e não havia conseguido nenhum progresso, desde a minha última investigação de uma provável caminhonete com placa daquele lugar com uma moça no banco de trás, e como descrevera o rapaz do posto, assustada. Tanto ele reparou na moça que mal se lembrava da cor do veículo, ninguém quisera falar sobre os possíveis donos na região.
Em frente ao único hotel, aliás a única construção de tijolos, notei a moto estacionando numa das esquinas, próxima ao Correio, já era a terceiro dia naquele mesmo horário que ele estacionava ali. Com certeza não era alguém daquela região, vestido com um macacão preto de couro, devia estar derretendo dentro daquela roupa. Meu instinto zumbiu e resolvi segui-lo, afinal estava estagnado nas minhas investigações.
Uma hora depois a moto saiu, liguei o carro e fui seguindo de longe, mas sem perdê-lo de vista. A tarde estava minguando e logo escureceria. Ele saiu pela Rodovia 95 e uns três quilômetros depois entrou numa estrada de terra. Ficara mais difícil acompanhá-lo, tive que apagar os faróis e seguir a luz vermelha da traseira da moto. Fez uma curva para a direita e entrou numa estrada estreita que mais parecia um leito seco de um antigo rio.
Apesar da lua estar clara e o céu estrelado, a visibilidade estava turva, aumentada pela poeira que a motocicleta fazia. A luz foi diminuindo e eu também, até que parou e se apagou.
Minha mente fez uma viagem rápida aos ensinamentos dos amigos policiais, poderia ser uma emboscada. Saí do carro e abri o porta-malas. Uma Shotgun automática, alguns cartuchos, uma pistola automática Eagle .45 e quatro pentes, ainda bem que atendi a solicitação de Kevin, o parceiro do FBI, quando disse que viria para aquela região, segurança nunca era demais, apanhei o colete a prova de balas com apoios para os pentes da pistola, a lanterna e uma respirada bem funda. Lá fui eu atrás do desconhecido.
Podia ver o vulto, se dirigindo para uma cabana, pela sua silhueta iluminada pelo resto de claridade do horizonte, mas de repente desapareceu entre as pequenas vegetações. Agachei-me, fiquei atento aos sons e nada, nenhum movimento. O som de uma porta se abrindo na cabana fez com que desviasse a minha atenção. Um homem enorme, careca e vestindo uma camiseta regata apareceu na soleira mal iluminada e fez uma verificação de 180 graus, breve, retornando para dentro da cabana. A visão em seguida foi de uma caminhonete estacionada nos fundos, em frente ao que parecia ser um celeiro. Seria muita sorte encontrar ali o sequestrador e a moça. Olhei em volta para tentar enxergar o motoqueiro, nada. Agachado, fui contornando o terreno e deixando a cabana do meu lado esquerdo até alcançar o que parecia ser um amontoado de ferro-velho e outras coisas que não identifiquei. Mais à frente um forno de pedra, grande e alto, sem fumaça saindo pela chaminé. Seria contra a lei, invadir aquela propriedade, sem ter certeza que a moça estaria ali. Preferi checar o celeiro, mas antes que me levantasse a porta dos fundos se abriu e o mesmo homem saiu em direção ao celeiro segurando um pequeno saco plástico preto. Aguardei até que entrasse e fui me aproximando devagar e atento, destravei a Eagle e a Shotgun, coloquei a pistola de volta no coldre e continuei. Por uma fresta vi o homem acendendo um lampião à gás e depois levantar do chão uma porta de madeira e travar numa corrente. Ele pegou o lampião e desceu o que parecia ser uma escada, foi então que ouvi um lamento e vários latidos. Segurei a Shotgun e fui entrando no celeiro, antes de alcançar a escada percebi a luz amarelada se aproximando da entrada do fosso. Rapidamente encontrei um local e me agachei, deixei o cano da arma acompanhando o homem até que saísse. Ali fiquei por alguns instantes, precisava de um bom plano, porém estava numa sinuca de bico, como dizia o ditado. Se entrasse no porão, os cães alertariam o homem, também não poderia pressionar o homem antes de saber o que havia ali dentro. Fui pela primeira opção. Instinto.
Com um pé de cabra forcei a chapa de ferro que segurava o cadeado, fui levantando a tampa bem devagar, estava escuro e só podia ouvir o som de um choro abafado e o mastigar de dentes, os cães deviam estar se alimentando. Nenhum grito. O odor fétido de uma mistura de detritos humanos e de animais invadiu minhas narinas, quase vomitei, tapei o nariz, mas não iria conseguir atirar com uma só mão, respirei bem fundo e prendi o ar. Seja o que Deus quiser. Levantei a tampa, acendi a lanterna que segurava junto a trava de repetição e quase caí de costas. Dois Rottweler negros se alimentavam do que parecia ser um corpo destroçado, sem a cabeça e os membros. Os animais olharam para mim e começaram a correr em minha direção. Um tiro e estourei a cabeça do primeiro e atingi o peito do segundo, que retornou, outro disparo e finalizei. O silêncio era tão grande que pude ouvir a porta da cabana sendo empurrada e o som de passos vindo em direção do celeiro, desci as escadas e pude ver três jaulas, aquelas utilizadas para grandes animais selvagens em circos ou safaris. Um vazio e outros duas mulheres. Uma delas levantou a cabeça, que estava escondida entre os braços e gritou por socorro. A outra não se moveu. Um grito alucinado vindo de fora, vários tiros de uma automática e em seguida dois estrondos, que me lembrava o som de um Colt 45. Esperei. Silêncio. Grito de Socorro. Estourei o primeiro cadeado da jaula onde a mulher não se movia, toquei o lado do pescoço e não senti a pulsação. Apesar dos anos de noticiários e fotos em jornais sensacionalista, aquela visão me abalou e fiquei ali agachado tentando me recompor. O coração estava acelerado e só voltei ao normal quando a outra moça segurou as barras da jaula e pediu que a soltasse. Joguei a luz da lanterna em seu rosto e apesar das marcas de agressão e a sujeira, vi que era a moça que procurava. Quebrei o cadeado e abri, ela desmaiou em meus braços. Estava nua e fria, mas viva. Levantei o corpo e coloquei em meu ombro para que pudesse subir e ainda manter a arma em posição. Subi bem devagar os degraus e espiei pela beirada da saída. Tudo tranquilo e silencioso. Empurrei a porta do celeiro com o pé e dei uma olhada pela redondeza antes de sair. O homem estava caído perto da porta e não vi mais ninguém próximo. Precisava verificar antes de expor a moça, saí e a coloquei na caçamba da caminhonete, a cobri com a lona e voltei a procurar por alguém. A escuridão impedia a minha visão mais detalhada e fui até a porta dos fundos da cabana. O local estava iluminado por vários lampiões colocados em algumas paredes. O cheiro era pior e mais intenso que no celeiro. A visão que tive fez com que voltasse para a soleira e vomitasse. Seis cabeças estavam condicionadas numa estante, como troféus, na mesa uma coxa humana, assada e faltando pedaços estava sobre uma bandeja, duas mãos dissecadas com sobras de carne nos ossos. Vomitei novamente. Precisava sair dali o mais rápido possível. Notei que havia dois pratos, um de cada lado da mesa. Ele tinha um comparsa.
Fui recuando e um clarão por detrás de uma cortina que separava outro cômodo e um baque no meu peito me jogaram para fora da cabana. Fiquei aturdido, mas consciente para poder ver o que parecia ser uma mulher, maltrapilha, descabelada e segurando uma espingarda de cano longo, saindo do cômodo e vindo em minha direção. A Shotgun estava longe do meu alcance, então saquei a Eagle do coldre e disparei duas vezes, uma acertou no ombro e a outra atravessou os cabelos pela lateral, não impedi que ela prosseguisse. Um novo tiro de espingarda atingiu o assoalho da varanda próxima da minha cabeça. Dessa vez mantive as mãos firmes e a mira em sua testa, acionei o gatilho e a bala estourou a parte de trás da cabeça da mulher, derrubando-a. Acompanhei o corpo inerte por debaixo da mesa e pude ver o tremor e depois parou. Deixei minha cabeça tonta e com um zumbido no ouvido direito cair sobre o assoalho da varanda.
Depois de alguns segundos me virei e apoiado nos braços fui me levantando com dificuldades. Nesse momento valorizei os policiais que enfrentam tiroteios com bandidos pela vida inteira. O peito ardia e respirava com dificuldades e a arma pesava em minha mão. Foi então que vi ao lado da caçamba da caminhonete, o vulto de um homem usando um chapéu de abas largas e um sobretudo que balançava ao sabor do vento, ele parecia verificar a jovem, tentei levantar o meu braço e apontar a arma, porém parecia que ela pesava uma tonelada. Ele ficou de frente e sacou sua arma do coldre preso na coxa direita e atirou, pensei que era o meu fim, contudo o baque e o estrondo de um tiro, que arrancou parte do telhado da varanda me fizeram olhar para trás. Era o motoqueiro que jazia com a viseira do capacete arrebentada e uma poça de sangue se formava entre o capacete e o assoalho. As pernas fraquejaram e caí sentado. O vulto girou o revólver no dedo indicador e o encaixou no coldre e foi se aproximando e quando chegou na luminosidade que vinha da cabana, pude enxergá-lo, senti um leve tremor percorrer meu corpo. Ele não tinha um rosto, era apenas uma cabeça descarnada, como de um cadáver em decomposição, fiquei estático esperando pelo pior, aliás o que mais poderia acontecer de pior. Ele parou e enfiou sua mão no bolso do colete e jogou uma distintivo de prata sobre o meu peito.
- Você mereceu, pode ser meu delegado. Disse ele com um sotaque interiorano e foi saindo gargalhando.
Foi depois que entreguei a moça ao amigo de meu pai, foi que descobri a história que ainda me gela a alma. Virgil Earp era o seu tataravô e havia sido xerife em Goldfield, onde morrera de pneumonia.
O caso ficou sem solução para o FBI e para a polícia da região que encontrara os corpos e nenhuma evidência que desse pistas do matador, para eles fora algum vigilante que fizera a lei pelas próprias mãos. Preferi deixar assim, aliás quem acreditaria em mim.
Todo ano, em 18 de outubro, viajo para Goldfield e faço uma visita ao túmulo vazio de Virgil Earp, já que seu corpo fora translado para Portland no Oregon a pedido da filha Nellie, sento-me ao lado da sepultura, uma oração de agradecimento e dois copos de uísque.
Ainda, hoje, posso ouvir aquela gargalhada fantasmagórica toda vez que resolvo um caso. A estrela, hoje, faz parte da minha vestimenta. “Deputy US Marshal.”

                                                                                                  Kiko Zampieri



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