1 de julho de 2015

A MENINA DO ÚLTIMO TREM - (conto - autor Kiko Zampieri)





Eu morava numa cidade próxima da capital. Era uma cidade-dormitório. Afinal todos os moradores, em sua maioria, só voltavam para dormir, no dia seguinte lá estavam embarcando no trem para irem trabalhar ou estudar. Eu era um deles. Trabalhava e estudava na capital. Geralmente embarcava no primeiro trem lotado e voltava no último, sempre vazio, se não fosse pela presença de uma garota no fundo do vagão todas as noites.
Foi a partir de fevereiro que começamos a nos encontrar no mesmo vagão, todas as noites no último trem, os cinco dias da semana.
Estranho era que ela sempre estava cabisbaixa e nunca tinha visto o seu rosto, devido aos longos cabelos castanhos que cortinavam a sua face. Silenciosa durante toda a viagem e seguia para a última estação, já que eu descia na penúltima.
Geralmente, eu cochilava durante a viagem, uns vinte minutos entre a estação que embarcava até a minha descida. Ela sempre estava no mesmo lugar quando eu entrava no vagão.
Pensei várias vezes tentar conversar ou chamar sua atenção, deixando cair a mochila ou uma crise de tosse, porém ela não movia um músculo. Algumas vezes achei que estava morta, contudo a mudança de vestuário mostrava que ela descia em seu destino e depois voltava.
Durante aqueles três meses eu ficara intrigado com a presença daquela garota no fundo do vagão, cheguei até a mudar de assento e me aproximar, mas achei que seria inconveniente incomodar alguém que parecia não querer manter nenhuma conversa.
Lembro bem daquele dia revelador. Era uma sexta-feira. Enquanto eu, rotineiramente, regressava para a minha casa e ela se mantinha em seu lugar no fundo do vagão, outros estavam festejando o alvorecer do final de semana e nesse dia, duas estações depois que embarquei, três rapazes entraram no vagão e se acomodaram entre eu e ela. Estavam alcoolizados e tentavam chamar a atenção da garota com as vozes altas e piadinhas inconvenientes. Fiquei no meu lugar, afinal eu não era nenhum cavaleiro da idade média e nem tinha um porte físico adequado para intimidar aquele grupo. Fiquei na espreita e atento.
Um deles foi se aproximando, segurando nas barras laterais para se manter em pé, o balanço e o álcool faziam com que o corpo dele fosse de um lado ao outro. Ela se mantinha cabisbaixa, o cabelo cortinando seu rosto, as pernas juntas e as mãos acomodadas sobre elas.
Ele falava alguma coisa, quase inaudível, e depois gargalhava, voltando-se para os outros rapazes, depois repetia e até que os outros também se levantaram e dessa vez me olharam enviesado, como se quisessem que eu me mantivesse no meu lugar. Não precisava nem pedir. Contudo um instinto incontrolável não conseguiu me conter e levantei.
- Ei! Deixe a menina em paz! Gritei, mesmo com o coração acelerado pelo medo.
- Senta aí e fica bem quietinho senão vai sobrar para você. Disse o maior deles.
Já que eu tinha enlouquecido e vestido a armadura reluzente, fiquei em pé e ameaçador, punhos cerrados e os pensamentos em turbilhão rodopiavam a minha mente, mais pelo medo do que pela estratégia de luta.
Um deles, então, resolveu vir até mim e acabar com aquela representação burlesca de herói de história em quadrinhos. Antes porém, que ele me alcançasse um grito estridente fez se ouvir pelo vagão, fazendo com eu fosse jogado para trás e os dois vidros das janelas em frente se estilhaçassem.
Por alguns segundos, quatro homens ficaram estáticos e desorientados. Eu fui me recobrando e me apoiei numa das barras verticais, um dos rapazes ergueu seu braço na intenção de tocar a cabeça da garota, foi um ato infeliz. Antes que ele alcançasse seu alvo, ela se levantou, não era mais a garota, confesso que não consegui identificar, pois as luzes internas começaram a piscar e pude ver aquela frágil garota saltar sobre o rapaz. Um grito e um pequeno uivo e foi ela para cima dos outros dois. Eu estava petrificado.
Em poucos segundos a luz ficou firme novamente e pude então ver com mais clareza, era uma cena aterrorizante, três corpos dilacerados e espalhados pelo chão do vagão e a menina sentada ao lado de um deles, o último. Fechei meus olhos e fiquei esperando o meu fim. Senti um hálito quente em frente ao meu rosto, não abri os olhos. A respiração ofegante e o calor que circundava meu rosto, como se quisesse me desenhar. De repente senti uma aspereza úmida subir pelo meu rosto, como uma língua e um ronronar tranquilo.
Quando o trem parou na estação, abri os olhos, três corpos dilacerados jaziam no chão frio do vagão. Uma poça do sangue esticara, devido ao movimento do trem, por baixo dos bancos. A menina não estava mais ali. A porta se abriu e saí apressado, alcancei a catraca, que quase deu duas voltas, subi as escadarias e corri aterrorizado pelas ruas escuras e desertas, sempre com a impressão de estar sendo seguido.
Ao chegar na esquina da minha rua, onde havia uma loja de discos e um poste, cujo facho iluminava sua grande vitrine, parei ao ver meu reflexo. Não era eu, era a menina com a cabeça levantada, deixando escapar um sorriso monalisado no rosto. Nesse momento percebi que as minhas mãos estavam sujas de sangue.

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