11 de março de 2015

DESAFIO ESPINHO D'ÁGUA DE CONTOS: NÚMEROS INFLACIONÁRIOS




NÚMEROS INFLACIONÁRIOS


06hs. 00min.
Eram seis da manhã e fazia umas trinta e cinco horas que ele estava sem dormir; nem mesmo um cochilo havia tirado. Ainda estava excitado com a ação do dia anterior. Estava entocado, escondido num barraco cujo chão era de barro e o barulho de ratos andando para lá e para cá não o deixava raciocinar direito. E o Tucão havia sido muito claro quando se despediu dele, com a promessa de voltar depois: “não é para pôr o bico para fora, entendeu?”. Sim, ele entendera e sabia que devia obedecer ao Tucão, afinal, fora dele o plano e a execução de toda a ação. Se bem que, também fora dele a ideia de chamar o Baby, que acabou por estragar quase todo o esquema.
A única coisa que podia fazer naquele muquifo era ver tv. E logo de manhã cedo já havia os programas policiais, que voltariam ao meio-dia, e depois no começo da noite e novamente no início da madrugada. Na tv e no rádio era só aquilo, desgraça e futebol no mínimo quatro vezes por dia na programação. E davam audiência, mesmo que as notícias fossem as mesmas.
E lá estava as imagens do circuito interno do banco e de uma loja do lado de fora, na rua onde eles haviam parado, no meio da madrugada. A imagem ficava repetindo inúmeras vezes, e toda vez ele se lembrava da cara abobalhada do Baby dizendo, em resposta às suas perguntas ao vê-lo encher os caixas eletrônicos de dinamite, que sabia exatamente o que estava fazendo. Não, o puto não sabia o que estava fazendo. Aliás, se soubesse, não guardaria a dinamite, que roubara de uma pedreira, bem embaixo da cama onde ele próprio dormia.
A quantidade fora exagerada. Ao invés de explodir apenas os caixas, a dinamite explodiu a agência toda. Parecia mais um atentado terrorista às três da manhã do que mais um assalto a caixas eletrônicos. Junto com os caixas, móveis, vidros e tudo mais que foi destruído e queimado, parte do dinheiro se inutilizou também. A expectativa do Tucão era amealhar uns oitenta a cem mil; porém o máximo que conseguiram foi uns cinquenta mil. Tucão ficou irritado, achou a quantia pouca. Estavam em quatro, não daria nem treze mil para cada um; para ele era uma mixaria.
Beto era o piloto de fuga, mas não sabia dirigir direito, estava no lance mais por ser cunhado do Tucão — e a irmã do Tucão vivia pedindo para ele ajudar seu marido —, do que por sua habilidade no volante, e também porque às três da manhã não havia nenhum carro nas ruas, e por mais inapto que fosse o piloto, daria conta de tirá-los dali sem muitas dificuldades.
Em menos de cinco minutos eles chegaram, explodiram a porra toda, tiraram o que deu para tirar de dinheiro que não tinha queimado e saíram de lá.
Tucão o deixou naquele barraco e disse para ele esperar e que voltaria depois para me busca-lo. Não conheço esse lugar. Ele disse para não usar celular nem sair na rua. Disse que levantaria suspeitas. Ele era paranoico, mas talvez tivesse razão. As horas seguintes de uma ação como essa são cruciais; a polícia fica no encalço como cães perdigueiros; fazendo rondas, atrás de qualquer tipo que lhes pareça suspeito.
Todo cuidado era pouco.


06hs. e 15min.
Bateram na porta do barraco, ele arregalou os olhos. Não sabia o que fazer. Ninguém falou nada. Ele ficou quieto, esperando. Bateram de novo, com mais força. Ele achou que poderia ser Tucão. Abriu a porta do barraco e viu um sujeito de cara cinzenta abriu um sorriso cínico.
— Como vai companheiro — disse o rapaz magricela.
Antes que o habitante temporário do barraco pudesse dizer alguma coisa, o rapaz que batera na porta forçou a entrada, e atrás dele surgiram outros dois rapazes com caras de poucos amigos. Dava claramente para ver que, por baixo das camisas, eles traziam armas.
— Quem são vocês? — perguntou o ocupante do barraco, que não escondia o nervosismo.
— Eu sou o Birão.
O nome do intruso não produziu nenhum efeito no interlocutor.
— O que você quer?
— Quero o dinheiro que você e o Tucão roubaram dos caixas eletrônicos.
— Não sei do que você tá falando.
— Não se faça de idiota. Dois dias atrás o Tucão me procurou para fazer essa fita, mas eu disse não por causa do Baby. Eu sabia que com aquele idiota na jogada, ia acabar dando alguma merda. E agora não para de repetir na tv a explosão da agência bancária. E eu vi quando o Tucão te deixou aqui.
— Não tenho nada aqui, nem aparelho celular.
— Eu não quero saber. Se vira. O Tucão falou para mim que esperava conseguir uns cem mil; e isso significa que no mínimo devem ter conseguido uns cento e cinquenta.
— Não deu tudo isso. Parte se queimou com explosão.
— Eu não acredito. E mesmo se acreditasse é isso que quero. Daqui duas horas volto aqui e é bom estar tudo arranjado. E esses dois aqui vão vigiar o barraco para você não fugir. O dinheiro vai ter que vir até mim. Entendeu?
O rapaz que ouvia tudo ia dizer algo em resposta, mas Birão não quis ouvir, deu as costas e foi embora, junto com os outros dois.


06hs. 45min.
Birão estava no carro quando o celular tocou.
— E aê vagabundo.
Birão reconheceu aquela voz escrota. Era o sargento Vilar.
— Logo cedo sargento.
— Pois é cedo que a vagabundagem tá se adiantando agora, não é?
— Do que o senhor tá falando?
— Da porra do caixa eletrônico que explodiu na madrugada.
— Não fui eu, senhor.
— Eu não disse que foi você.
— E então?
— Não foi você que fez a fita, mas é você que vai ficar com o dinheiro.
— Como o senhor ficou sabendo.
— Se eu disser, aí o malandro seria você e eu seria o vagabundo.
— Ainda não estou com o dinheiro.
— Mas vai estar. Quanto é montante?
— Cem mil.
— Mentira. Deve ser, no mínimo, cento e cinquenta.
— Talvez não tenha nada, eles explodiram a porra toda.
— Problema de quem explodiu e seu que foi lá atrás do dinheiro. Agora sua questão é comigo.
— De quanto o senhor tá falando?
— De tudo?
— Tudo.
— Sim; e como o mínimo não me interessa, quero o máximo, e creio que seja uns duzentos mil.
— Senhor, não cabe essa quantia toda nos caixas.
— Você mesmo não disse que explodiram o banco todo? Então, na certa estouraram também o cofre e tudo mais. Devem ter raspado tudo.
— Eu não acho que...
— O que você acha não me interessa. Duzentos mil até o meio-dia, senão a casa cai para o seu lado.
Birão ia tentar argumentar, mas o sargento Vilar desligou o telefone.


07hs. 30min.
O sargento Vilar estava sentado na sala do delegado Salgado. Quinze minutos antes o sargento havia recebido uma chamada via rádio para comparecer na delegacia, à pedido do delegado. Ele não fazia ideia do que poderia se tratar.
Logo o delegado Salgado entrou e cumprimentou o sargento Vilar.
— Como vai sargento?
— Tudo bem senhor. O que manda?
O delegado soltou um sorriso de canto de boca; não disse nada. Abriu a gaveta da sua mesa e tirou um gravador de dentro dela. Em seguida apertou a tecla do play. O sargento Vilar se assustou ao ouvir sua voz gravada. O conteúdo da gravação era a conversa de minutos antes que o sargento tivera com Birão.
— O senhor grampeou minha linha? — perguntou Vilar, surpreso.
— Sim, assim como você grampeou a linha desse tal Birão.
Sargento Vilar ficou em silêncio por alguns segundos, em seguida perguntou:
— Então qual é o negócio senhor?
— Se ouvi direito, o valor citado por você foi de duzentos.
— Na verdade, eu disse esse valor mais para pressionar o vagabundo do que para...
— Pois o negócio são esses duzentos e mais cinquenta, por tentar passar a perna em mim na minha área.
— Como é?
— Não entendeu? Eu faço a contra para você; duzentos mais cinquenta dá duzentos e cinquenta.
— Duzentos e cinquenta mil? Impossível.
— Impossível é você querer ser algo além do bosta que você é. Quer passar por cima de mim, na minha área; quer me desmoralizar?
— Não, não senhor, mas é que... eles não roubaram essa quantia toda.
— Sabe que dia é hoje?
— Hoje é dia cinco.
— Exatamente, dia de pagamento. Eu tenho informação de que naquela agência havia no mínimo uns quatrocentos mil. Se esses imbecis tiveram um trabalho todo daqueles para não levarem tudo, o problema agora é seu.
— Não vou ter como dispor dessa quantia senhor.
— Então amanhã o senhor não poderá dispor de oxigênio para respirar, entende?
— Mas, senhor?
— Acha que a questão aqui é o dinheiro, sargento. Não, não é. A questão é hierárquica; o senhor de crescer onde não devia; e deve pagar o preço por isso. Hoje o valor é esse, 250 mil, e ainda é uma pechincha. Não queria dar uma de malandro? Agora aguenta a rebordosa.
— Mas senhor, o senhor devia considerar que...
— Eu não devo nada, quem deve aqui é você. Agora dê o fora daqui e volte às quatorze horas, com o dinheiro no porta-malas do seu carro.
O sargento Vilar ainda tentou argumentar, mas o delegado Salgado não quis ouvir mais nenhuma palavra e o pôs para fora de sua sala.


12hs. 25min.
Rufino’s Restaurante. Centro da cidade.
Na mesa estavam o delegado Salgado, Tucão e Oswaldino, gerente do banco BSH (Business Safe House), alvo da explosão aos caixas eletrônicos realizado na madrugada por Tucão e seus comparsas.
— Eu disse que daria tudo certo — disse o delegado Salgado enquanto sorvia um bom gole de uísque dezoito anos, de uma garrafa aberta especialmente para a ocasião.
— Devo admitir que você tinha razão — disse Oswaldinho que também bebia grandes goles do mesmo uísque.
Tucão não disse nada, apenas se limitou a dar um gole grande na caneca do chope que pedira. Ele foi o único que recusou o uísque.
— Essa era a melhor oportunidade de matarmos vários coelhos com uma cajadada só — emendou o delegado Salgado.
— O senhor pensou em tudo mesmo — soltou Tucão, e nada mais disse.
Realmente o plano era perfeito.
Meia-noite o carro forte trouxe os malotes e abasteceu os doze caixas eletrônicos que realizavam saque. Era dia de pagamento e aquela agência era uma das mais procuradas da cidade, pois firmara um contrato com várias empresas que depositavam os salários dos seus funcionários nela. Cada caixa foi abastecido com 40 mil. Sem contar os mais de cem mil dos dez guichês de atendimento para os que fossem sacar dinheiro na boca do caixa. O gerente do banco, Oswaldino, recebeu os homens da transportadora de valores e esperou que terminassem de abastecer os caixas. O procedimento era muito rápido, não podia ser demorado por questões de segurança. Em menos de quarenta minutos estava tudo acabado e o carro forte tinha ido embora.
À uma e meia da manhã, o gerente, com a ajuda do Tucão, esvaziou quase todos os caixas, deixando apenas dois ou três com algumas quantias, que somadas chegavam a uns setenta mil. Também limparam os guichês. Duas e quinze da manhã os dois saíram com meio milhão de reais do banco no porta-malas do carro do Tucão.
Às três da manhã o Tucão voltou ao banco, dessa vez acompanhado de Baby, o cara dos explosivos, e Davi, que depois seria deixado no barraco para ser buscado depois. E de Beto, o piloto de fuga que ficou esperando no carro, com o motor ligado.
Baby não pretendia usar tanta dinamite quanto usou, mas Tucão insistiu na grande quantidade, pois ele sabia que era preciso destruir qualquer evidência do que havia sido feito minutos antes. Quase o quarteirão todo foi pelos ares, e parte dos setenta mil se queimou, sobrando apenas os cinquenta mil auferidos.
— A essa altura, o fulaninho lá, qual é mesmo o nome dele? — perguntou o delegado Salgado para Tucão.
— Quem? O que ficou no barraco?
— Sim, esse mesmo.
— Davi.
— Sim Davi, nosso boi de piranha; ele já deve ter sido eliminado por Birão, que por sua vez foi eliminado pelo sargento Vilar, pois duvido que tivesse os 200 mil exigidos pelo sargento. Já esse sargentinho de merda que queria cantar de galo na minha área, cuidei para que seja morto numa troca de tiros com meus homens, os quais vou dar uns bons cinco mil para cada um, num flagrante de extorsão e assassinato do vagabundo alcunhado de Birão. Tudo se fecha, sem pontas soltas.
“Ainda restou uma ponta solta” pensou o Tucão, mas não disse nada. A ponta solta era o garçom do restaurante, que aceitou três mil reais para servir ao delegado Salgado e ao gerente de banco Oswaldino, não o uísque da adega do restaurante, mas o da garrafa dada pelo Tucão, que chegou meia hora antes dos outros dois no restaurante e fez a proposta ao garçom, entregando-lhe a garrafa de uísque fechada e com seu líquido devidamente envenenado. Certamente ele teria que dar conta do garçom mais tarde. Mas agora a prioridade era outra.
Ele pediu licença ao delegado e ao gerente de banco e levantou-se dizendo que iria ao banheiro. Ele tinha cerca de meia hora antes do veneno fazer efeito. Ele sairia pelos fundos do restaurante; do outro lado da rua, Beto já o esperava, com o motor do carro ligado e 500 mil reais dentro do porta-malas.

Beto não sabia dirigir direito, mas era seu cunhado, e Tucão não queria mais ouvir sua irmã pedindo a ele que ajudasse seu marido.

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