28 de dezembro de 2007

DESTINOS HUMANOS IMUTÁVEIS (Conto)

No meio da noite acordei com a bexiga doendo; fui ao banheiro urinar, na volta, enquanto tomava um copo d’água, escutei um som distante, um estampido seco, de um tiro. Cinco segundos depois, outro disparo; mais cinco segundos e outros quatro disparos seguidos; fiquei atento, de orelha em pé, para o que se passava há poucos metros de minha casa. Os tiros deram uma trégua; pude ouvir uma voz fraca, tentando gritar, mas lhe faltava forças: “Estão me matando! Estão me matando!”. Em menos de dois minutos os disparos voltaram a se suceder; eu voltei a dormir; aquela, de certa forma, não era mais uma novidade pra mim. No dia seguinte, comentou-se que um homem havia sido morto com quinze tiros, ao pé do escadão que dava para rua de cima, onde as pessoas subiam todo dia, para pegar os ônibus das linhas que passavam pelo centro da cidade.
Embora eu não tivesse curiosidade de urbuzar o morto, era impossível ignorar a presença de um cadáver a menos de trezentos metros da minha casa. Na rua onde se encontrava o morto, não havia muita gente aglomerada em torno dele; talvez porque já fosse dez da manhã e o assassinato, o cadáver coberto por sacos pretos de lixo, deixando as pernas semi-abertas descobertas e as súplicas de clemência do infeliz durante seu assassinato na madrugada já haviam se tornado notícia relativamente velha e não haveria porquê requentá-la mais que devido. A molecada jogava bola e ignorava a presença de um ser humano morto logo ali; eles estavam acostumados com cenas como aquela, muitas vezes até faziam disso uma diversão; me lembro de um dia vê-los brincando, correndo pra cima e pra baixo, puxando uma linha, cuja uma das pontas estava amarrada pela calda uma ratazana morta do tamanho de um gato. Em dado momento um dos meninos deu um chute e a bola acabou acertando a cabeça do defunto; o som da bola batendo na cabeça coberta pelo saco plástico tirou alguns risos de muitos que olhavam de longe; apenas os mais velhos, que ainda não haviam se acostumado ainda com as barbaridades que viam diariamente na favela – esses homens e mulheres de mais de quarenta anos de idade cresceram numa época em que a violência tinha cara, nome e endereço; os bandidos esperavam a madrugada, vestiam-se de preto, cobriam o rosto com um lenço de seda e cometiam seus assaltos valendo-se, muitas vezes, apenas de um canivete; na maioria das vezes o revólver era só para assustar; e ainda que fossem ladrões e assassinos, havia respeito e uma espécie de código de ética entre eles mesmos e de seu modo de agir com suas vítimas; eles morriam de medo da polícia, “as autoridades”, que eram chamados de mocinhos nos filmes, confiáveis e cumpridores da lei e da ordem, caso ela fosse violada ou ferida.
Hoje em dia é pé no peito, chute no saco e tapa na cara de todos os lados, a qualquer hora do dia ou da noite. A bandidagem esculacha, a polícia esculacha, os patrões esculacham, a televisão esculacha, o governo esculacha. Estão todos se acostumando a serem tratados como objetos de pouca valia, como lixo comercial de terceiro mundo. A criançada de hoje cresce sabendo que o mundo visto em comercial de banco, de telefonia móvel, de cerveja, de pasta de dente, de refrigerante, de carro, de desodorante, e de planos de previdência privada só é possível e só lhes pertencerá por meio do dinheiro, e para ter dinheiro no Brasil só roubando, como os políticos fazem a torto e a direito.
Ao meio-dia, finalmente, o rabecão do IML dignou-se a vir buscar o corpo que já começava a feder e a se decompor.
Voltei pra casa e almocei. Aquela cena não tirava mais o meu apetite.

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