30 de junho de 2007

BONÍSSIMA AURORA (Conto)

Aurora, boníssima Aurora. Em Aurora vivi os melhores anos da minha vida, até porque os anos que vivi foram os únicos que tive e também, em Aurora, foi onde nasci, me criei e onde ainda vivo. Lembro-me melhor a segunda parte, já que a primeira, o nascer, não é lembrança viva em minha memória; minhas recordações começam a fluir em minha mente a partir dos meus seis anos; antes disso nada tenho de recordação. Talvez seja uma injustiça não ter nenhuma lembrança de quando era recém-nascido, já que considero estes, os primeiros, os melhores anos da minha vida e acho que todos deveriam pensar assim. É tudo muito simples, apenas dormir, chorar e mamar. O sono é fácil e tranqüilo; o choro é quase sempre por causa da fome, que depois de saciada, voltamos a dormir, sem complicações e questionamentos existenciais.
Minto ao dizer que me criei; o que acharia papai e mamãe disso? À eles devo esse crédito. Minha infância e juventude não merecem atenção especial nem menções que devam ser levadas em consideração. Foi tudo muito normal, graças à deus. A fase de minha vida que passo a admirar mais é a atual; concordo que ter sessenta e cinco anos, para muitos, não deve ser muito excitante, mas são os anos que tenho e deles muito me orgulho. De que vale ter a força e não saber usá-la, ter a coragem e ser imprudente, acho que de nada vale. Prefiro a paciência cultivada que tenho e que me ajuda a refletir sobre tudo que fiz e tudo que deixei de fazer.
Não sou nostálgico. O saudosismo beira e acompanha a acomodação e a tristeza; quando elogio Aurora, não me valho do passado, mas sim do presente, do que tenho e de quem sou. Aurora merece meu cortejo, ainda é bela e vistosa. Cidade pequena; antes parecia ser maior e melhor, mas seus encantos jamais o tempo ou as pessoas poderão destruí-los. Sinto-me dono de aurora e acho que posso me sentir um pouco assim, como aquelas pessoas que invadem um terreno e lá ficam por dezenas de anos, mesmo não sendo donos legítimos, o sentimento de posse e soberania e compreensível. Assim me sinto: um dono sem poder sobre sua propriedade; logo eu que sou tão possessivo. Me atenho a ficar distante e sozinho, como sempre fui, como nunca quis ser e como acho que vou terminar.
Minha vida foi tão teimosa e repetitiva que chego a me envergonhar. Não tenho aventuras das quais possa me vangloriar nem romances proibidos, duelos mortais e descontroles emocionais. Nada. Nada de inconstante. Amigos, quase nenhum; amei muitas mulheres, muitas, mas meu destino foi o mesmo de Camões. O solitário barda português é minha companhia literária predileta e consagrada; sim, Camões morreu sozinho, e percebo que assim será também o meu fim. Não gosto desta constatação, mas pra que mudar o que se faz perfeito? Quando alguém nasce para sofrer e tenta mudar essa sina, acaba por fazer outras pessoas sofrerem junto com ela. Porém, não defendo a desistência dos sonhos e fantasias; sei que, às vezes, a dor é tanta que pensamos em desistir, mas quando desistimos, aí é que a dor aumenta desconsoladamente.
A solidão que sinto só não é maior, porque tenho a companhia mágica dos meus livros, dos meus discos, da minha mobília antiga e dos animais de estimação, que nada me estimam. Mas pra que reclamar? Pra aumentar o ressentimento? Não, não mesmo. Prefiro sofrer pouco do que muito. O que vivi foi o suficiente; tive amigos que me abandonaram, mas foram sinceros; tive amores que não me amaram, mas o importante não é ser correspondido amorosamente, e sim amar; o importante não é ter no que acreditar, mas sim acreditar. Acreditar, não nas coisas, mas em si mesmo.
Agora apenas observo os outros ao meu redor, cometendo os mesmos erros que eu cometi; confesso que isso me consola. É estranho, mas pelo menos assim percebo que não fui eu quem, sozinho, errou, e sim a vida. Há certas coisas que são inevitáveis, por mais que se tente evitá-las.
Minhas reminiscências parecem tomar forma de despedida melancólica, mas não foi essa a minha intenção. Talvez seja um reflexo do inverno, da chuva lá fora, das más notícias que as rádios, mais quantitativamente, irradiam hoje em dia; do tempo que foi desperdiçado e que não volta mais.
O que me resta é o melhor de tudo: a compreensão dos meus sentimentos, a calma para aproveitar melhor os poucos momentos felizes, minhas receitas de bolo caseiro, meus programas de televisão (que sempre estão reprisando), meus cobertores que já têm a forma exata do meu corpo, minha lareira, meus dedos, minhas pernas, meus vinte e dois dentes que sobraram, etc. tenho o melhor da vida, que é a própria vida, e apenas ela.
Engraçado, tudo isso me veio à tona, só porque olhei pela janela e vi um buraco onde antes havia um hospital, o mesmo hospital onde eu nasci e que agora vai dar lugar a um shoping center. É o progresso, o progresso que eu não posso evitar. Não posso evitar que coisas, quase unânimes, aconteçam, mesmo que elas sejam inumanas e destrutivas. Ao menos sei que fiz a minha parte, tendo sido ela útil ou não, eu sei que, ainda bem, as coisas nas quais acredito não me traíram, isso me conforta e me salva ileso da maldade da Aurora de hoje em dia.

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