21 de agosto de 2015

A DÉCIMA LÍNGUA - PARTE I





Estacionei a moto, uma Harley Davidson alugada, no acostamento da I 80 W, tirei o capacete e respirei fundo. Ainda estava me recuperando, psicologicamente, do meu último caso em Goldfield, então resolvi aceitar o convite do xerife de Betisburg, um amigo de armas, para passar uns dias com ele e a família. Era uma cidade interiorana da velha e pacata Pensilvânia.
Coloquei o capacete e acionei a ignição, olhei os dois lados da rodovia e atravessei, peguei uma estrada vicinal com a placa da cidade desejando boas-vindas. Lembrei da frase muito difundida naquele estado. “Memories last a lifetime, you've got a friend in Pennsylvania (Lembranças duram uma vida inteira, você tem um amigo na Pensilvânia)”
Kurt fora meu capitão na Companhia de Atiradores de Elite na Guerra do Kuwait, dera baixa um ano antes que eu e agora era o xerife da pequena cidade de Betisburg.
Na delegacia um policial me avisou que o xerife estava num enterro e explicou como chegar até lá. Pela multidão, que naquele instante acompanhava a esquife sendo carregada por seis homens, a pessoa deveria ser muito importante para a cidade. Preferi ficar longe e observando, pude ver Kurt no início da multidão, não mudara nada, alto, postura ereta, cabelo raspado e de olhar fixo.
Estava sentado na moto quando ele saiu pelo portão com a esposa e os dois filhos.

- Ei xerife! Gritei acenando.

Kurt pareceu não me reconhecer sem a farda, deixou a família e foi se aproximando de mim, com a mão direita no cabo da arma, que foi afastada quando viu quem era.

- Boggie!

Eu odiava esse apelido. Nos abraçamos como nos velhos tempos e foi me carregando para onde a família estava, agora mais tranquila. Estranhei aquela tensão, talvez pela morte, porém preferi não questionar, por enquanto.
Fui apresentado a esposa, que ao invés de estender a mão, me abraçou forte, ela devia conhecer a história do homem que salvara seu marido da morte no Kuwait. Correspondi. Os filhos me cumprimentaram normalmente e ele pediu para que o seguisse até sua casa.
Quando Kurt respondeu minha pergunta sobre de quem era o enterro tão movimentado, fiquei arrepiado. Kurt me contou que a falecida fora assassinada com outras oito mulheres e os corpos haviam sido encontrados no fundo de uma mina de carvão abandonada. Todas foram estupradas, tiveram a língua arrancada e os ouvidos selados com cera quente. Quanto ao assassino se suicidara antes que os policiais invadissem a mina. Estranhei o fato de não ter lido ou assistido nada sobre esse caso e ele me explicou que o FBI havia solicitado segredo e só depois que a perícia concluiu o relatório e os corpos liberados a imprensa recebeu autorização para ser divulgado.
Lembrei da chacina em Nickel Mines no ano de 2006, quando um dos alunos tomara a escola e mantivera alguns alunos aprisionados, o final fora aterrador, matara quatro crianças e uma professora e depois se suicidara.
Percebi que ele estava muito abalado, era aceitável, afinal fora sob sua jurisdição que ocorreram as mortes, eu sabia como ele estava se sentindo, era da mesma forma quando ele perdia um de seus soldados.
De repente ele fixou seu olhar em mim, eu sabia, sabia que viria aquela velha pergunta e assim foi. – Preciso de sua ajuda. Pronto. Todo o meu planejamento de um bom descanso, cervejas e uísque, estavam indo por água abaixo. – Estou cismado que alguma coisa não está certa nesse crime. Suspirei e balancei a minha cabeça cheia de pensamentos e palavras chulas.
Pedi para que ele me posicionasse sobre o caso e se tivesse acesso aos relatórios tanto do FBI como da perícia que trouxesse no dia seguinte. Estavam em seu escritório, disse prontamente e resolvemos ir até lá.
No carro dele fomos para o centro da cidade. No caminho ele se abriu. Estava encucado com os fatos que levaram aquela chacina. Primeiro eram as residências das outras nove, todas de outras cidades longínquas, depois sobre o assassino, morrera duas horas antes dos policiais chegarem e também pelo fato de não terem encontrado restos de comida ou garrafas de bebida e do fato de que ninguém o vira na cidade e nem nas redondezas. Outra coisa fora a denúncia anônima. O delator parecia conhecer bem o lugar, afinal era um local ermo e intransitável com precipícios e estradas cobertas de vegetação. Fora como se essa pessoa estivesse dentro da gruta e não simplesmente vendo uma movimentação estranha pela redondeza. Não haviam conseguido identificar a chamada e nem a pessoa.
Numa das salas esparramamos na mesa de reunião, os relatórios e fotos da perícia. Eram fotos aterradoras e bizarras de mulheres dependuradas pelos pulsos, com sangue nas bocas, devido a extração da língua e também escorridos pelas pernas motivado pelo estupro violento.  Enfileiradas como bois pendurados numa câmara frigorífica, esperando ser desossados. Os resultados levavam ao homem morto. Preservativos com restos de sêmen, marcas de pólvora na mão que segurava a arma. As marcas de um veículo, encontradas entre a entrada da propriedade até a boca da mina, estavam quase que totalmente apagadas e não havia sido identificadas pelos peritos. O homem até o momento era um desconhecido, suas digitais não estavam no sistema e sua foto divulgada pela imprensa em busca de alguém que o reconhecesse.   
Depois de ler tudo, convenci Kurt a me levar até o local. Precisava me ambientar e tentar me alinhar com o criminoso. Era assim que fazíamos na Companhia, conhecer o inimigo e o seu habitat para fazer parte do ambiente.
Ele estacionou a pick-up próxima ao portão que dava acesso a estrada que nos levaria até a mina. Se houvesse alguma evidência, essa já estaria contaminada, mesmo assim achei melhor caminhar do portão até a entrada da mina. Marcas na estradinha podia esquecer, tantos veículos e pessoas passaram por ali nem perderia tempo em analisar alguma marca. Detive meus olhos nas orlas da estradinha, entre os pequenos tufos de vegetação e na cerca de arame farpado que corria pela estradinha, dos dois lados. Caminhei de um lado para o outro até alcançar o velho trilho que servia de acesso aos carrinhos para dentro da mina e vice-versa. Fiz uma análise minuciosa do terreno para entender como o assassino trazia suas vítimas. Pelo relatório dos legistas, elas ficaram algum tempo congeladas, menos a última. O homem media um metro e setenta e pesava 75 quilos, a mais leve das mulheres pesava 70 quilos, o que dificultaria a descarga do corpo de algum veículo para o carrinho. Precisaria vir de ré até o local onde deveria estar um dos carrinhos de transporte de minério. Fiz uma cronograma mental da subida de uma caminhonete, indo até a boca da mina, depois indo de ré até a cerca de arame farpado, depois esterçava indo para frente e finalmente de ré até o local dos trilhos. Era um espaço curto e teria que ter muita habilidade para não despencar pelo precipício.
Fiz o trajeto da manobra e observei que uma das estacas havia sofrido uma leve pancada. Um corte na madeira e uma mancha seca, passei o dedo e aproximei do nariz, baunilha, era o cheiro de baunilha. Pedi para Kurt que cerrasse o pedaço demarcado, atendeu e colocou-o num saquinho plástico de evidências. Dei uma olhada pela beirada e constatei que era precipício de difícil acesso. Chequei com o binóculo, porém a mata era muito densa, impossível de ver alguma coisa lá embaixo, para verificar teria que descer até o fundo. Foi quando notei um pedaço de plástico preso no arame farpado da cerca, não na primeira, mas sim na segunda linha. Dei a Kurt para colocar dentro de outro saco de evidência. Depois fui para dentro da mina. O pessoal da técnica havia feito um pente fino em toda extensão do túnel, não ia me preocupar em tentar verificar novamente, preferi seguir até o fundo.
Mesmo sem os corpos, podia vê-las ali dependuradas. Havia um odor fétido, de acordo com o relatório alguns corpos estavam a mais de seis meses pendurados. Restos de uma fogueira mais ao fundo, porém nenhum sinal de que ele havia se alimentado ali. Estava ficando impossível ficar ali dentro por causa do forte odor e resolvemos sair.
Lá fora pedi para Kurt abrir o mapa que indicava os locais dos desaparecimentos. Eram cidades ao longo da rodovia I 80 W, o que me chamou a atenção foi um espaço mais largo entre a oitava e a nona vítima, fiz um ponto de interrogação sobre o local, para depois investigar se houvera algum desaparecimento.  
Chequei o relatório do FBI onde informava sobre as evidências encontradas, preservativos usados, restos de componentes de celular, ouro e prata derretido, tudo encontrado nos restos da fogueira, uma panela com restos de cera. Em seguida os relatórios dos legistas que indicavam a falta de parte da língua e o entupimento dos ouvidos com cera, dilacerações na vagina e ânus que indicavam o estupro antes da morte, com muita brutalidade.
Meus instintos vibravam, alguma coisa não se encaixava naqueles assassinatos. Usar preservativos para estuprar violentamente e depois deixá-los jogados próximos, prevenção contra alguma doença venérea também estava descartado, pois ele iria se matar. Resolvi então voltar para o fundo da mina e encontrei o que meu instinto desconfiava. Elas haviam sido brutalizadas por um pedaço de madeira, parecido com um taco de basebol e jogado entre as outras madeiras velhas no fundo da mina. Entreguei para Kurt para que fosse enviada para análise. E os preservativos? Pode ser que ele transasse com elas antes de brutalizá-las.
Discuti com Kurt os pontos que estavam vagos e chegamos a mesma conclusão, as mulheres não foram só estupradas pelo homem, mas sim brutalizadas para sentirem dor, muita dor e tal fato junto com os outros, me levavam a uma conclusão, a morte tinha sentido pessoal, talvez uma vingança, mas não a ação de um serial killer psicopata ou sociopata. Pronto, adeus férias.
No escritório, Kurt entrou em contato com as duas cidades que ficavam entre o ponto de sequestro da oitava e nona vítima. Deu resultado. Uma mulher havia desaparecido um mês antes da última, ela trabalhava num restaurante na beira da rodovia. Ele anotou o endereço e resolvemos visitar o restaurante naquela noite.
O gerente nos deu informações precisas sobre uma pessoa de macacão branco, que jantava todas as noites e sempre dava boas gorjetas a ela, algumas vezes conversavam demoradamente. Perguntei sobre o horário da chegada do motorista e ele informou que sempre próximo ao final do expediente dela, por volta das vinte e uma horas. Questionei sobre algum logotipo no macacão e a resposta foi rápida. Everest Ice Cream. Sorvete. Baunilha. Congelamento. Era o que martelou a minha cabeça, era o assassino. Kurt mostrou a foto do homem da mina e recebemos uma negativa. Não era um homem era uma mulher. Aí foi que gelei. Kurt olhou para mim e suspirou, havíamos encontrado o verdadeiro assassino, mas e a mulher que fora raptada, pensei. O precipício logo venho na mente. Com certeza aquela batida na cerca havia aberto a porta e o corpo devia ter caído no fundo do precipício.
Era hora de avisar o FBI, sugeri, porém Kurt pediu que resolvêssemos o caso primeiro, ele precisava limpar o seu nome com a comunidade, afinal no próximo ano seria de eleição. Entendi e concordei. Mãos à obra então, sugeri. Primeiro iríamos descer no precipício e tentar confirmar nossas desconfianças, depois encontrar a empresa de sorvetes e descobrir se havia ocorrido algum fato na cidade que levasse a esse tipo de vingança, afinal ali fora o fim do caso, com certeza fora o início também.


 Continua...

Nenhum comentário: